Há exatos 50 anos o mundo viu em ação o maior time de futebol de todos os tempos. Nunca, nem antes nem depois, houve algo igual. A Hungria de Puskas, a Holanda de Cruyff, a Alemanha de Beckenbauer, o Real Madrid de Di Stefano, o Barcelona de Messi, o Santos de Pelé, o Botafogo de Garrincha, todos foram subalternos à Seleção Brasileira campeã do mundo em 1970, no México.
Mas a formação daquela potência não foi nada pacífica. Na Copa anterior, em 1966, o Brasil havia fracassado rotundamente – foi desclassificado na primeira fase e terminou como o 11º de 16 seleções. Houve um consenso de que a responsabilidade pelo fiasco era da CBD, a antecessora da CBF, que levou para a Inglaterra um grupo de 47 jogadores, de onde tiraria os 22 que participariam da competição.
Para a Copa seguinte, a CBD decidiu ousar: contratou João Saldanha, o "João Sem Medo", para ser o novo técnico. Era, de fato, uma ousadia: Saldanha, gaúcho do Alegrete, até já fora técnico do Botafogo, mas era mais conhecido como comentarista de rádio. Além disso, ele era um comunista declarado e no Brasil vigiam os anos de chumbo da ditadura militar.
Saldanha aceitou a proposta num dia e, no dia seguinte, chegou à sede da Confederação com um papel, anunciando:
— Aqui estão os meus 11 titulares e os meus 11 reservas.
Os 11 titulares eram Félix, Carlos Alberto, Brito, Djalma Dias e Rildo; Piazza, Dirceu Lopes e Gérson; Jairzinho, Tostão e Pelé.
Os 11 reservas eram Cláudio, Zé Maria, Scala, Joel e Everaldo; Clodoaldo, Rivellino e Paulo César; Paulo Borges, Toninho Guerreiro e Edu.
A ideia de Saldanha era de que a população inteira soubesse de cor a escalação da Seleção Brasileira.
Havia mais: ele não queria que os jogadores fossem chamados de “canarinhos”, como acontecia desde que a camisa da Seleção se tornara amarela.
— Agora eles vão ser chamados de feras — avisou.
Eram as feras do Saldanha.
E as feras rugiram e morderam e devoraram os adversários nas Eliminatórias. O Brasil ganhou suas seis partidas e se classificou. Estava tudo bem.
Só que não.
O gênio indomável de Saldanha começou a se manifestar e os problemas passaram a se acumular. Às vezes ele criticava integrantes da sua própria comissão técnica, às vezes fazia restrições a alguns jogadores. Chegou a dizer que Pelé era míope! Um dia, irritado com declarações feitas pelo técnico do Flamengo, Yustrich, Saldanha resolveu que responderia às críticas à moda do Alegrete: na bala. Invadiu a concentração do Flamengo de revólver na mão, gritando:
— Onde você está, canalha!
Yustrich não estava. Avisado de que Saldanha vinha a sua procura, escafedeu-se para local incerto, não sabido e seguro.
Em outra oportunidade, Saldanha foi informado de que o presidente Médici queria que o centroavante Dario fosse convocado. A resposta de Saldanha foi, igualmente, alegretense:
— O presidente convoca o ministério e eu convoco a Seleção.
PPor fim, a Seleção foi fazer um amistoso contra o Bangu em Moça Bonita. Era para ser um jogo-treino sem importância. Foi uma tragédia decisiva. O Bangu marcou o primeiro e botou bola na trave e a Seleção estava toda empastelada e não conseguia evoluir. No segundo tempo, o técnico do Bangu ajudou: substituiu nove jogadores. Aí a Seleção empatou, mas a torcida, nas arquibancadas, gritava:
— Eu grito! Eu falo! O João Saldanha tem cara de cavalo!
Depois disso, Saldanha foi demitido. Em seu lugar entrou Zagallo, que botou Pelé e Tostão juntos no ataque e convocou Dario. Mas os movimentos de Zagallo não foram apenas políticos. Ele fez algo que talvez tenha sido único na história do futebol: escalou cinco “números 10” no mesmo time: Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivellino. Havia ainda um sexto, Paulo César Lima, que entrou em todos os jogos.
Zagallo acomodou os talentos, mas não os ajuntou. A acomodação foi organizada. Foi cerebral. Ele pediu que Rivellino caísse mais para a esquerda e que Tostão se colocasse à frente de todos, como centroavante. Recuou um pouco Gérson e deslocou Jairzinho para a direita. Na defesa, recuou Piazza para a zaga e promoveu Everaldo para titular. Quando atacado, o time todo recuava para trás da linha da bola. Quando atacava, o time era dinâmico, nenhum jogador guardava posição, qualquer um podia aparecer para concluir.
Liderada tecnicamente por um Pelé no auge da forma atlética e psicológica, a Seleção venceu todas as suas partidas no México, ganhou a torcida e se consagrou demonstrando um futebol que uniu a arte à eficiência. Mas nada pode ser mais eloquente para definir aquele time do que o próprio time. Seu último gol, marcado pelo capitão Carlos Alberto, resumiu o jogo daquela máquina de praticar futebol.
Aos 41 minutos do segundo tempo, a Itália cobrou lateral no lado esquerdo da Seleção. Tostão correu para assediar o adversário, provando que os atacantes também marcavam. Ao mesmo tempo, Everaldo, solidário, jogou-se de carrinho para retomar a bola. Acossado, o italiano a perdeu. Ela ficou com os zagueiros do Brasil, que trocaram passes rapidamente, até que Clodoaldo recebeu na intermediária de defesa. Quatro italianos o cercavam e se atiraram sobre ele. Que driblou um, dois, três, quatro, levantando a torcida mexicana, um lance de lustro individual, mas de sentido coletivo. Clodoaldo passou para Rivellino na esquerda e ele estendeu para Jairzinho, que estava deslocado naquele lado.
Esse posicionamento de Jairzinho fazia parte de um plano: Carlos Alberto sabia que puxara a marcação e que teria espaço para avançar pela direita. Foi o que ele fez. Enquanto isso, Jairzinho tocou para Pelé, que, calmamente, como se estivesse passeando, esticou a bola rasteira, mansa, no chamado “ponto futuro”, para Carlos Alberto surgir e mandar a bomba. Golaço.
Uma obra-prima de trabalho em grupo, pensado e treinado e, ao mesmo tempo, de habilidade particular. Coisa de gênio. Ou, antes, de uma reunião de gênios. Da maior reunião de gênios que algum dia calçaram chuteiras para jogar uma partida de futebol.