Três dias após o Brasil ser campeão do mundo, Porto Alegre foi palco de uma recepção apoteótica para seu representante na conquista do Tri, na Copa de 1970. "Toda a cidade foi ver a volta de Everaldo", estampava a capa de Zero Hora de 25 de junho daquele ano, dia seguinte do retorno do lateral ao Rio Grande do Sul. O único gaúcho na Seleção Brasileira que encantou o planeta foi criado em uma pequena casa de madeira da Rua Ludolfo Boehl, no bairro Glória, na Capital. Filho de um estivador e de uma empregada doméstica, Everaldo Marques da Silva tinha 25 anos quando entrou para a história do futebol brasileiro ao participar da conquista do Tri. Quatro anos depois, o jogador do Grêmio morreria em um acidente de carro na BR-290.
— Para mim é um orgulho (ter um pai campeão do mundo) — resume Denise Helena Silva da Silva, 51 anos, filha de Everaldo e sobrevivente da trágica colisão que matou o jogador, a esposa dele, a outra filha do casal e uma irmã do lateral-esquerdo, Romilda.
Denise tinha seis anos quando Everaldo, a mãe, Cleci, e a irmã mais nova, Daisy Gisele, morreram. Mesmo assim, lembra de momentos com a família. As recordações ganham força em conversas com amigos e familiares.
— Sempre que possível, ele foi um pai presente, viajava com a gente. Íamos para Torres, Tramandaí. Lembro de uma foto dele com o Jair (goleiro) e o Espinosa (lateral, depois técnico) de maiô na praia (risos). Ele sempre foi muito simples, gostava de jogar bola com os amigos da Glória. Imagino que se fosse vivo seria como o Tinga (ex-jogador da dupla Gre-Nal) — conta Denise, que hoje trabalha como cozinheira em uma escola estadual e cursa a faculdade de Administração.
Everaldo também era apaixonado pelas músicas do seu amigo Lupicínio Rodrigues. Na vitrola do jogador, tocava ainda o cantor Paulo Diniz e muito samba. Certa vez, quando a família já morava na Vila Assunção, os convidados para o jantar foram Jamelão, Sargentelli e suas mulatas. No Carnaval, o lateral era Bambas da Orgia fanático, tanto que desfilou por vários anos pela escola.
— Ele sempre foi da turma da música. Nas viagens, ia para o fundo do ônibus e nos divertia. Era amigo de todos — recorda o ex-companheiro de Grêmio João Severiano, 78 anos.
Também era um programa dos Silva frequentar a chácara D e D (Daisy e Denise), que tinham em Viamão. Everaldo gostava de estar sempre bem arrumado. Por ter sido campeão do mundo, era cortejado em todos os locais que frequentava. No auge da carreira, ganhava 15 salários mínimos (hoje, cerca de R$ 20 mil). O que acabou não rendendo grande patrimônio.
Com a morte dos pais, Denise ficou sob os cuidados da avó paterna, Florinda Marques da Silva, já falecida. O grupo de whats da família é uma homenagem a ela, chama-se "A Grande Família de Dona Morena". A mãe do campeão de 1970 criou os sete filhos praticamente sozinha, já que o marido morreu jovem. Para colocar comida na mesa, precisou trabalhar como doméstica e lavar roupas para fora. Com o primeiro salário que recebeu como atleta do Grêmio, Everaldo comprou madeiras novas e reformou a casa da mãe. Dos sete filhos de Florinda, apenas três ainda são vivos: Arivaldo, o Dico, Sherley e Arnaldo. Dico, que trabalhou por muitos anos como massagista do Grêmio, era o mais próximo do lateral.
Relíquias da carreira de Everaldo, como a Bola de Prata entregue pela Revista Placar em 1970 e a réplica da Jules Rimet com a qual desfilou pelas ruas de Porto Alegre, estão na casa de Denise, no bairro Restinga. Ela também guarda uma grande coleção de reportagens e até a jaqueta marrom com franjas que o pai vestia ao retornar do tricampeonato no México. Revisitar o acervo faz a cozinheira relembrar o passado e conhecer mais o pai.
— Ele é o ídolo da família — concluiu a filha do gaúcho que integra a melhor equipe de futebol de todos os tempos.
Festa uniu gremistas e colorados
O avião Caravelle da empresa Cruzeiro do Sul que trouxe Everaldo de volta ao Rio Grande do Sul foi recebido ainda no ar por quatro caças Gloster-Meteor da Força Aérea Brasileira. Eram 15h do dia 24 de junho de 1970 quando o gaúcho ilustre desembarcou em Porto Alegre com uma réplica da taça Jules Rimet e uma bandeira do Brasil. Na pista do aeroporto, vestindo jaqueta marrom com franjas, foi recepcionado, entre outros, pelo prefeito Thompson Flôres e pelo presidente da Assembleia Legislativa, Otávio Germano, além da diretoria e jogadores do Grêmio.
Ao lado da esposa, Cleci, da mãe, Florinda, e da filha Denise, então com um ano e oito meses, o jogador subiu no trono montado em um caminhão e saudou as milhares de pessoas que foram recebê-lo. Em seguida, percorreu algumas ruas da Capital. A cada esquina da Avenida Farrapos, bandas colegiais tocavam marchas e muito papel picado voava pelos ares. Foguetes faziam parte da trilha sonora. Quando o veículo com Everaldo chegou à esquina da Mauá com a Borges de Medeiros, a Bambas da Orgia esperava o campeão com sua empolgada bateria. O lateral chegou até a dançar e depois passou a acenar para a multidão. A recepção uniu tricolores e colorados. Zero Hora descreveu assim a comemoração: "Foi uma festa monumental, onde o azul e o vermelho cantaram em paz. Porto Alegre nunca viu uma coisa igual. A cidade estava assistindo, sem dúvida, a maior recepção a uma personalidade. Havia de tudo. Homens, mulheres, muitas crianças, gaúchos a caráter, mexicanos fantasiados. Bandeiras do Grêmio e do Brasil em profusão, e algumas do Internacional. O Marabá (do bairro Glória), seu primeiro clube, estava com dois caminhões lotados de torcedores."
Após quase quatro horas, Everaldo chegou ao seu apartamento, que estava lotado de familiares, amigos e imprensa. O lateral tentava conversar com a filhinha Denise, mas a toda era abordado. Entre os presentes que lhe esperavam, uma "cadeira do papai" e um terno novo. Sobre a recepção em Porto Alegre, declarou:
— Eu sabia que ia ser um negócio, mas confesso que me surpreendi. Nunca pensei que chegasse a tanto.
Com o tornozelo inchado pelas batalhas no México, o lateral ainda aguardava os US$ 13 mil de premiação pelas duas últimas partidas do Mundial — já havia recebido US$ 4,5 mil pelos quatro jogos iniciais. Também pensava em buscar o Dodge Dart que havia ganhado de uma empresa de veículos e a joia oferecida pela Casa Masson. Para a semana seguinte, já era aguardada a sua reapresentação no Grêmio. Duas semanas após ser campeão do mundo, era esperado para enfrentar o Flamengo de Caxias, no Olímpico.