Quando Belchior ainda era um estudante de Medicina sem bigode, no começo dos anos 1970, ele assistiu a uma aula inaugural do filósofo cearense Augusto Pontes, que, logo de saída, apresentou-se assim:
– Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem parentes militares.
Dizer essas coisas no tempo da ditadura era uma rara rebeldia. Fagner, que, mais tarde, seria primeiro parceiro e depois desafeto de Belchior, também estava na aula. Achou aquilo tão engraçado, que caiu na gargalhada, fazendo com que todos os alunos se voltassem para ele. Belchior, quietinho que era, quietinho ficou. Mas guardou a frase com cuidado, a fim de usá-la em outra oportunidade. E a usou, construindo um dos clássicos da MPB:
"Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do Interior".
Augusto Pontes nunca reclamou da apropriação da sua frase por Belchior. Ao contrário, julgava-se homenageado. Mas, um dia, fez uma breve crítica por ele ter trocado "parentes militares" por "parentes importantes".
– Belchior não teve coragem de botar? – brincou.
Li isso em uma biografia de Belchior lançada meses atrás pelo jornalista paraibano Jotabê Medeiros. O título do livro é, justamente, Apenas um Rapaz Latino-Americano. Bom livro. Bem escrito. Boas histórias.
Foi uma grandeza de Augusto Pontes não ficar ressentido com Belchior pelo empréstimo da frase, mas ele não entendeu uma parte: Belchior não ficou com medo; ele melhorou, e muito, a sua boutade. Se Belchior tivesse colocado "parentes militares", a música ficaria datada, compreensível tão somente para quem viveu durante o regime militar.
Naquela época, os militares eram o que havia de mais importante no Brasil. Se você tivesse alguma pretensão, como trabalhar em um cargo público, as pessoas lhe perguntavam:
– Você tem pistolão no Exército?
"Pistolão" era algum militar de alta patente, digamos, um coronel, que, como se dizia então, "mexeria os pauzinhos" para você conseguir o emprego.
Lembro que, certa vez, um amigo nosso lá do IAPI bazofiou:
– Quando crescer, vou ser presidente do Brasil?
Outro amigo, o Edu Brites, aconselhou:
– Então, entra no Exército.
A todos nós aquilo soou como muito lógico: ninguém imaginaria que um presidente pudesse não ser do Exército.
O poder era dos militares. Eles mandavam e desmandavam – até o fim dos anos 1980. A partir daí, a redemocratização restringiu o poder deles aos quartéis e às suas funções constitucionais. Hoje, ninguém acharia grande coisa alguém dizer que tem parentes militares, e a música de Belchior teria uma poesia menor.
Essa é a grande distorção que produz a ditadura. É a cultura do privilégio por influência, não por merecimento. Porque, se você não precisa mostrar que merece, você não trabalha para merecer. Você apenas bajula os pistolões certos e se dá bem. Ninguém constrói uma nação desse jeito.
As pessoas se esqueceram de que o Brasil funcionava desta forma, por isso muitos sentem nostalgia da ditadura. Na verdade, sentem nostalgia de um tempo em que tudo era mais singelo, tudo era sim ou não, preto ou branco, sem matizes, sem requintes, sem complicações.
A democracia é complicada. A democracia ainda nem deu certo no Brasil. Mas só não ter que agradar a uma casta para receber o que é seu por direito já é uma evolução. Estamos longe do lugar ideal, concordo. Mas não desista: estamos indo para lá.