Eu era apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e tinha ido de Porto Alegre para Criciúma a fim de viver a vida que sempre quis, como repórter de jornal. Junto com meus colegas de redação, o fotógrafo Sidney Cruz e a também repórter Nádia Couto, havia alugado o apartamento 1.001 do Edifício Ouro Preto, a meia quadra do Diário Catarinense.
Quando digo que não tinha dinheiro, não se trata de poesia. Nosso salário era de iniciantes na profissão, eu dormia em um colchonete e minhas roupas ficavam empilhadas no canto da parede do quarto. Não possuía aparelho de som nem TV, só um radinho de pilha e um gravador daqueles antigos, de fita cassete.
Nos finais de semana, a Nádia e o Sidney corriam para Porto Alegre. Eu, depois de fazer o mesmo uma ou duas vezes, decidi que não iria mais. Ficaria. Aquela era a minha nova casa, afinal.
E, então, lá estava eu, sozinho no meu quarto, deitado no colchonete, quando despertei, às 4h da madrugada de sábado. A luz da lua entrava pela grande janela francesa, ainda desprovida de cortinas. Fazia um calor ameno e eu, meio que automaticamente, liguei o radinho. A voz rouca de Belchior ecoou pelo apartamento, décimo andar. Ele cantava Paralelas e, em um segundo, aquela melodia um pouco doce e um pouco triste, de uma nostalgia de algo que está por vir, tomou conta de mim, encheu o meu peito, me fez levitar. A música e a letra de Belchior falaram à juventude perversa do meu coração, e tive de me conter para não saltar dali, abrir a janela e gritar:
– Teu infinito sou eu, sou eu, sou eu!
Não foi a primeira vez que Belchior se comunicou diretamente comigo. Nenhum outro compositor brasileiro ou estrangeiro, nem Chico, com suas letras de amor e de política, nem Caetano, com sua poesia concreta e crítica, nem o samba de raiz de Paulinho da Viola, nem Beatles, nem Rolling Stones, nem o Nobel Bob Dylan, ninguém teve tanta ligação musical comigo como Belchior.
Há tempo, muito tempo que estou longe de casa e, nestas ilhas cheias de distância, fiquei sabendo, neste domingo, que Belchior morreuexatamente na minha terra, o Rio Grande do Sul. Não sabia que Belchior andava por lá, pouca gente sabia. Belchior, ultimamente, era mais notícia por seus sumiços do que por suas aparições.
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Sei por quê. Belchior foi coerente até o fim. Sua ânsia de liberdade e seu coração suavemente selvagem não eram deste mundo. Em uma de suas composições imortais, ele escreveu:
Meu bem, mas, quando a vida nos violentar,
Pediremos ao bom Deus que nos ajude.
Falaremos para a vida: "Vida, pisa devagar,
Meu coração, cuidado, é frágil".
O coração de Belchior era frágil porque ele acreditava na bondade das pessoas e na grandeza da existência. Por isso, cantou, sua alucinação era suportar o dia a dia. Belchior não suportou. Chegou o momento em que desistiu. Largou carro e casa, amigos e família, dinheiro e carreira, largou tudo e saiu por aí, para voltar a ser o que sempre foi: apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco. Essa era a sua essência. A minha também. E de tantos mais que, mesmo sentindo que o tempo andou mexendo com a gente, repetimos, a cada dia que termina no horizonte: A felicidade é uma arma quente.