Josely Teixeira Carlos
Professora de linguística e pesquisadora da USP com tese sobre Belchior
Toda e qualquer obra artística emerge de um percurso biográfico singular. E cada um desses percursos associa-se a um tempo e a um espaço determinados do universo cultural. É exatamente a importância de compreender essa relação que justifica a publicação de Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano, de Jotabê Medeiros.
Batizado como a primeira biografia de Antonio Carlos Belchior, o lançamento conjugou-se à comoção pela notícia da morte do cantor e compositor, em 30 de abril, potencializada por seu autoexílio que já durava quase uma década. Em tom que vai do jornalístico ao literário, o texto propõe-se a descortinar, em 15 capítulos breves e fluentes, diversas personas e vários papéis incorporados pelo cearense enquanto pessoa e artista, da infância à morte.
O leitor encontrará muitos belchiores, os da vida privada e os do âmbito público: o menino do interior nordestino filho de Dolores e Otávio, o 13º de mais de 20 irmãos, o jovem seminarista no mosteiro de Guaramiranga, o estudante que migra para a capital para estudar no Liceu do Ceará, o dissidente da faculdade de Medicina.
Deparará também o artista debutante em Festivais de Fortaleza, que a seguir desceu do Norte para o Rio, o compositor que encontrou a intérprete ideal (Elis), o artista querido de seus parceiros, o antagonista de Fagner, o cantor de voz franca e desesperada à maneira de Dylan e com influências de literatos, músicos e gêneros musicais díspares, o letrista de ironia e sarcasmo afiados, o compositor lírico e romântico e o símbolo sexual, o amante e artesão da caligrafia e das artes, o produtor de discos e o empresário dono de gravadora. Descobrirá ainda o galanteador das mulheres, o marido de Angela, o pai carinhoso de Camila e Mikael, o homem que deixou a família para sair no mundo com um novo amor.
Para recuperar esses percursos, Medeiros utiliza, como fontes, livros sobre a produção musical internacional, brasileira e cearense, pesquisas científicas sobre o trabalho do músico e, particularmente, artigos e reportagens que registram sua vida e obra, publicados no Ceará, no eixo Rio-São Paulo e no Rio Grande do Sul. Também são considerados depoimentos de pessoas que conviveram com o sobralense – a criança, o jovem, o adulto: parentes, ex-esposa, ex-namoradas, filhos, amigos e parceiros, produtores de discos e inclusive o ex-analista, citado na canção Divina Comédia Humana – coletados em entrevistas e até no Facebook. A esse respeito, em uma segunda edição enriqueceriam muito o livro informações precisas referentes aos entrevistados e ao contexto das entrevistas. Essa ausência é levemente contrabalançada pelo índice onomástico, que traz entradas com os nomes de pessoas, lugares, títulos de músicas e discos dispostos no texto.
Num país de frágil memória como o Brasil, todas essas obras são significativas na medida em que irão compor o arquivo daquilo que representa Belchior e daquilo que somos cultural e historicamente
Josely Teixeira Carlos
Professora de linguística e pesquisadora
Outro ponto de relevo é a contextualização dos principais álbuns de Belchior, como Mote e Glosa, Alucinação, Coração Selvagem, Todos os Sentidos, Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo, Objeto Direto e Paraíso, incluindo leituras interpretativas de canções fundamentais, das quais se evidenciam Populus, Pequeno Mapa do Tempo e Tudo Outra Vez. No cômputo geral, a biografia de Medeiros é ao mesmo tempo crítica e afetiva. Em alguns trechos o biógrafo chega a se mostrar íntimo de seu protagonista, chamando-o de Bel. Sua voz confunde-se, nesse caso, com as daqueles mais próximos do artista, que usavam carinhosamente essa redução. Assim, se o binômio razão/emoção interage naturalmente em todo tipo de comunicação, também está nesse vínculo a beleza do trabalho do biógrafo.
Provando que não se pode biografar como convém, "sem querer ferir ninguém", uma das críticas surgidas já na primeira semana do lançamento do livro é a de que a obra, que tem os capítulos finais dedicados ao exílio e à morte de Belchior (Bangalôs, Charqueadas e Acampamentos e Inmemorial), não elucidaria o mistério de seu afastamento. De fato, o mérito da biografia está muito mais em dar um primeiro passo na apresentação ao grande público da complexidade identitária de Belchior, em 70 anos de existência, do que em encerrar um caminho, com explicações definitivas sobre as escolhas da vida e da arte do criador dos versos "Saia do meu caminho. Eu prefiro andar sozinho" (de Comentário a Respeito de John).
Somando-se ao trabalho de Medeiros, à minha dissertação de mestrado e à tese de doutorado, que analisam o cancioneiro de Belchior imbricado à sua trajetória, merecem ser destacadas duas novas publicações, ainda sem data prevista para lançamento, que trazem olhares muito particulares para o entendimento da ruptura social de Belchior. São os livros do advogado gaúcho Jorge Cabral e do jornalista maranhense radicado em Santa Cruz do Sul Dogival Duarte – dois dos principais responsáveis pela acolhida de Belchior no Rio Grande do Sul entre 2013 e 2017.
Em todos esses textos, o que se deve levar em conta não é o homem independente do artista ou o artista apartado do homem, mas sim a sua intricada união
Josely Teixeira Carlos
Professora de linguística e pesquisadora
Em Belchior – A História que a Biografia Não Vai Contar (edição do autor praticamente finalizada, somando 240 páginas em 23 capítulos), Cabral, já no título, promete iluminar aspectos não tratados por Jotabê Medeiros. O release anuncia que a obra relatará de forma romanceada e com reflexões intimistas o contato do advogado com o músico, quando da estadia deste na residência daquele, no ano de 2013. A narrativa se inicia com o dia da partida de Belchior da casa do autor, no capítulo A Primeira Parte do Último Dia. Em seguida, conta como se deu o encontro com o cantor no balneário de Atlântida Sul e descreve os hábitos da personagem principal, destacando a sua rápida adaptação ao ambiente da família, em Porto Alegre e em Guaíba. Cabral detalha as conversas que teve com o artista sobre filosofia, cinema, músicas e espiritualidade e chama a atenção para o interesse do compositor pelo cenário político nacional. Sem citar o nome de Edna, a companheira de Belchior considerada por muitos a responsável por seu isolamento, o autor encerra o livro abordando a morte do cantor, no capítulo 30 de Abril de 2017, e apresentando suas impressões sobre o relacionamento entre Belchior e a mulher, em Quem Era Ele, Entre Eles.
Na mesma linha de Cabral, o livro de Dogival Duarte, em finalização, começou a ser escrito dois dias antes da morte de Belchior, e hoje ultrapassa 300 páginas. Com o título Amizades e Canções – Os Últimos Tempos do Belchior e ainda sem editora, o projeto tem como objetivo recolher, com caráter pessoal, os diálogos que o autor, a esposa Bruna e o filho Dionel tiveram com Belchior e Edna durante a presença do cantor em Santa Cruz do Sul, descrevendo relações antigas de amizade e detalhes da ida do artista para a cidade do interior gaúcho e da ocasião da morte do cearense.
Num país de frágil memória como o Brasil, todas essas obras, ao buscar reconstituir a identidade de um de nossos maiores cancionistas, são significativas na medida em que irão compor o arquivo daquilo que representa Belchior e daquilo que somos cultural e historicamente. Em todos esses textos, o que se deve levar em conta não é o homem independente do artista ou o artista apartado do homem, não é a vida fora da obra, nem a obra fora da vida, mas sim a sua intricada união. Tudo isso é Belchior!
Os livros
Belchior – Apenas um Rapaz Latino-americano
De Jotabê Medeiros, ed. Todavia, 240 páginas, R$ 49,90 (e-book: R$ 34,50).
Belchior – A História que a Biografia Não Vai Contar
De Jorge Cabral, ed. do autor. Publicação prevista para os próximos meses.
Amizades e Canções – Os Últimos Tempos do Belchior
De Dogival Duarte. Em finalização.