A abadessa emérita Paula Ramos, 87 anos, não fazia ideia de quem era o hóspede no Mosteiro da Santíssima Trindade, no interior de Santa Cruz do Sul. Esguio, bigode farto e cabeleira preta, Belchior apareceu com sua companheira, a produtora cultural Edna Assunção de Araújo, e duas malas. Parecia feliz naquele outubro de 2013. Chegou com um amigo e passou quase despercebido. As demais monjas logo detectaram a presença ilustre. Belchior continuava o mesmo, exceto por algumas rugas a mais.
– Madre Paula, a senhora se deu conta de quem estamos hospedando? É um elefante branco! – disse uma das irmãs, que conhecia a história do cantor e a polêmica em torno de seu sumiço, noticiado na imprensa.
Com 65 anos de vida religiosa, a abadessa contabilizava seis décadas de clausura, sendo duas delas sem contato com o mundo externo. Não testemunhou o ápice da carreira do músico cearense e desconhecia suas canções.
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Nos últimos dias, o episódio da visita foi relembrado pelas freiras com uma nota de tristeza, por conta da morte de Belchior, encontrado sem vida no domingo passado, em Santa Cruz. Ele tinha 70 anos e morreu dormindo, vítima de rompimento da aorta. Estava vivendo de favor, com Edna, 50 anos, na casa de um empresário local. Nem os vizinhos sabiam.
A notícia agitou a cidade de 125 mil habitantes, atraiu jornalistas do centro do país ao município do Vale do Rio Pardo e pegou de surpresa as beneditinas. Belchior e Edna passaram pelo mosteiro duas vezes nos quatro anos em que se esconderam em Santa Cruz, cidade dos últimos refúgios do criador de clássicos do repertório nacional, como Alucinação, de 1976.
Naquele primeiro contato com madre Paula, o cearense célebre agia como uma pessoa de hábitos simples, gestos delicados e poucas palavras. Quem pediu pouso para ele no monastério foi o radialista Dogival Duarte, 50 anos. Assim que Edna e Belchior se instalaram no local, situado no distrito de Rio Pardinho, a companheira do cantor chamou a abadessa para conversar. A octogenária foi informada, então, de que o artista era procurado pela Justiça. Por se negar a pagar pensão alimentícia para a ex-mulher, Ângela Belchior, ele teve mandado de prisão decretado e as contas bloqueadas. Edna tinha medo de que o companheiro fosse preso e considerava a cobrança injusta. Também dizia ser alvo de perseguição política, o que nunca foi bem explicado.
– Ficamos um pouco preocupadas com tudo aquilo, mas São Bento diz que, quando alguém procura acolhimento no mosteiro, é o próprio Cristo que vem ao nosso encontro. Não podemos negar ajuda – lembra a irmã Andréa Freire, 51.
A guinada na vida de Belchior, segundo relatos de amigos, começou em 2005, quando ele e Edna se conheceram, em São Paulo. Ele apaixonou-se pela produtora cultural e decidiu terminar o casamento de 35 anos.
Aos poucos, o autor de Como Nossos Pais cortou laços com os quatro filhos já crescidos, abandonou os palcos e deixou tudo para trás, sem dar explicações. Familiares até hoje não entendem a mudança repentina e culpam Edna pela reviravolta. Há quem diga que ele apenas se cansou dos holofotes e partiu em busca de aventura. Edna, nesse caso, seria o estopim.
A controvérsia foi parar nos jornais, e o mistério em torno da fuga de Belchior cresceu, principalmente depois da veiculação de reportagens no programa Fantástico, da Rede Globo, em 2009 e 2012, que relataram a rotina de fuga e os problemas financeiros do casal. As irmãs beneditinas evitaram tocar no assunto.
– Temos algumas regras. Não ficamos perguntando coisas para as pessoas – explica irmã Andréa.
Nos pouco mais de 30 dias em que permaneceu no mosteiro, situado no topo de uma colina, Belchior cativou as oito beatas que lá viviam. A pedido das anfitriãs, cantava e tocava violão no intervalo das 19h às 20h, horário destinado à conversa e à troca de experiências. A música mais pedida era Paralelas, a preferida da irmã Teresa Paula, 60 anos. Segundo ela, Belchior mantinha a potência vocal de outrora e emocionava as religiosas. Edna nem sempre gostava. Temia que ele fosse descoberto, mas os apelos das freiras eram mais fortes. Ele nunca se negou a cantar para elas.
– Quase desmaiei de emoção quando o vi. Não era um artista qualquer. Ele era um patrimônio da música brasileira e estava ali, bem na nossa frente. Estava absolutamente lúcido e continuava genial, apesar de tudo – diz a irmã, que hoje vive em São Paulo.
No restante do dia, o autor de Medo de Avião ficava no quarto com Edna, lendo e escrevendo. Certa vez, ganhou de madre Paula penas e canetas de caligrafia e reproduziu um poema de Santa Teresa de Jesus. O objeto é guardado como relíquia pelas freiras.
Belchior também agradava as religiosas quando participava de missas e orações. Sete vezes ao dia, o silêncio do lugar é quebrado pelo ressoar do sino e pelos cantos religiosos. Ex-seminarista, ele conhecia a liturgia, admirava Santa Gertrudes e São Francisco de Assis e era apreciado por isso.
Na cerimônia do Ano-Novo, em 31 de dezembro de 2013, o bispo emérito de Santa Cruz, dom Sinésio Bohn, 82 anos, pediu para que o convidado cantasse Panis Angelicus, cântico católico escrito por São Tomás de Aquino. Belchior atendeu a solicitação com gosto.
– Foi um momento bonito, de muita intimidade. Ele era um gentleman – sintetiza o bispo.
Quando estavam todos juntos, conversando, o forasteiro gostava de falar sobre suas viagens a Portugal e contava piadas que faziam as freiras corar. Falava sobre os festivais de música do passado e sobre Elis Regina, de quem sentia saudade.
Comia o que todos comiam, com exceção de carne vermelha. Se não havia alternativa, bastava-lhe ovo frito. Tomava água e gostava de uma taça de vinho tinto.
Em janeiro de 2014, o casal teve de deixar a paz do mosteiro porque as normas internas impedem estadias longas. Na despedida, Belchior recebeu das novas amigas um anel de prata com a imagem de São Bento.
Pequenos agricultores e MST intermediaram ida a Santa Cruz
A chegada de Belchior e Edna a Santa Cruz do Sul, na derradeira etapa da vida do cantor, só foi possível graças à rede de contatos do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do Movimento dos Sem Terra (MST), com o qual Edna tinha proximidade. Havia, também, admiração mútua entre o cantor e os militantes das causas sociais.
Sentados ao redor da mesa, no centro da sala, em março de 2013, três integrantes do MPA começaram a conversa pedindo sigilo ao médico Aquiles Gusson, 53 anos, e à dentista Gloria Miranda Caceres, 51. Proprietários da Ecovila Karaguatá, comunidade alternativa em Linha Ficht, a 10 quilômetros do mosteiro, os dois até se assustaram.
– Não estávamos entendendo no início. Aí eles perguntaram se poderíamos hospedar Belchior e a mulher, com a condição de manter segredo. Aceitamos porque a nossa proposta é alojar quem quiser viver de forma comunitária – recorda Gloria.
Na Páscoa de 2013, os visitantes chegaram à propriedade de 42 hectares, onde há pomares e lavouras de uso coletivo. Carregavam duas malas e vinham de carro do norte do Estado, trazidos por amigos. Desde 2009, pelo menos, eles já haviam passado por inúmeras outras cidades gaúchas, como Santa Vitória do Palmar, São Lourenço do Sul, Guaíba e Porto Alegre. Na Ecovila, a permanência acabou durando menos do que esperavam – apenas três semanas. Nos primeiros dias, o isolamento se mostrou impossível.
– Recebemos muita gente aqui, principalmente para meditar. Às vezes temos 20, 25 pessoas. Toda vez que chegava alguém, era uma correria. Edna entrava em pânico. Ficava uma situação muito estranha – conta Gloria.
Quando os dias eram de calmaria, a tensão baixava. Uma tarde, a dentista ouviu sons vindos do banheiro. Minutos depois, Belchior saiu de lá sorrindo. Cabelo e bigode estavam negros como breu. Edna havia retocado a tintura, e ele estava radiante.
Outro dia, a produtora cultural apareceu na sala anunciando:
– Atenção, vejam essa obra de arte!
Na sequência, Belchior entrou na sala risonho, desfilando como se fosse um modelo na passarela. Exibia uma calça jeans multicolorida, pintada à mão. A criação era da dupla, que também se dividia na cozinha. Ela fazia bolo de chocolate. Ele ajudava a lavar a louça e a pilar a cúrcuma (açafrão-da-terra).
Para a frustração de Aquiles, Belchior nunca pegou no violão, apesar de haver instrumentos por todos os lados na casa.
– Meu filho toca, eu toco, mas não teve jeito. A Edna dizia que, quando ele estava compondo, não tocava – relembra Aquiles.
Certa vez, Edna disse a Gloria que daria um curso por três dias e que eles voltariam em breve. Foi essa a última vez que os viu.
– Saíram levando as malas e nem deram tchau. Para o MPA, Edna contou que juízes tinham vindo atrás deles, mas isso nunca aconteceu – diz Gloria.
Durante toda a estadia, o casal nunca ajudou nas despesas. A única contribuição financeira, segundo Aquiles, vinha do MPA.
O fã que tentava romper a reclusão
Quando soube pelo MST que o ídolo estava na cidade, depois de virar o mundo ao avesso atrás dele, o radialista Dogival Duarte ficou eufórico. Desde os 18 anos, o maranhense radicado no Rio Grande do Sul percorria o país para acompanhar shows do cantor. Foram tantas as visitas a camarins, que os dois acabaram se tornando amigos no fim dos anos 1980.
Por isso, assim que Belchior e Edna deixaram a Ecovila, ele fez questão de recebê-los em casa, na área urbana de Santa Cruz, onde vive com a mulher, Bruna, e com o filho, Dionel. Aos 23 anos, o jovem também é apaixonado por Bel, apelido que o compositor ganhou da família. Bel o chamava de "meu bruxo".
Dogival acredita que o amigo largou tudo porque estava cansado dos palcos, mas acabou estendendo demais a pausa por influência de Edna.
– Ele queria recarregar as baterias e foi longe demais. Edna meteu na sua cabeça que os dois tinham de fugir da ex-mulher dele – afirma Dogival.
Nos quase 12 meses em que ficou na residência do diretor da Rádio Santa Cruz, Bel passava os dias tomando chá verde, lendo poetas franceses, falando sobre o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a quem admirava, comendo peixe e pão de queijo. Dogival providenciava para que nada lhe faltasse.
O cantor também fazia imitações de Chico Anysio e de Didi Mocó, personagem de Renato Aragão. Assistia a filmes, escutava CDs e via regravações de suas músicas no YouTube – adorava a versão de A Palo Seco pela banda Los Hermanos. Trabalhava em traduções e dizia estar compondo, embora nenhuma das fontes consultadas por ZH tenha visto as letras ou ouvido as novas canções – Edna cuidava para que os escritos ficassem sempre dentro de uma pasta, longe de todos. Nem mesmo Dogival, que estava sempre por perto, tinha certeza do que de fato estava acontecendo.
– Eu dizia: "Bel, vamos fazer um show para te tirar dessa situação? Podemos comprar uma casa para você não depender mais da ajuda de ninguém". Ele se empolgava, mas a Edna jogava água fria. E ele obedecia como se fosse um cachorrinho – diz o jornalista.
Belchior o espiava pela janela e ia ao encontro do amigo quando Dogival chegava do trabalho. O eterno fã, que prepara uma biografia sobre o ídolo, o abraçava e beijava. Descontente com a reclusão do cantor, fazia de tudo para tirá-lo de casa:
– Eu forçava a saída. Colocava o Bel no carro à noite e saía para passear, mostrar a cidade.
O sonho de construir uma torre de livros
Com o tempo, Dogival teve de procurar outros lugares para abrigar Belchior, porque a relação do radialista com Edna se desgastava. Antes de passar pelo santuário das monjas beneditinas, o músico e a companheira foram acolhidos pelo professor de Filosofia da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) Ubiratan Trindade, 56 anos, e pela dona da Casa das Cucas Waechter, Ingrid Trindade, 52. Por devoção ao ídolo, ambos aceitaram a missão.
Quando a filha do casal, Marina, 22, veio de Porto Alegre, Bira e Ingrid tiveram de contar o segredo. Ela foi recebida por Belchior com um longo abraço.
– Marina, que bom que finalmente vou te conhecer. Vamos conversar? – disse o astro para a estudante boquiaberta.
Foram três meses de convivência, sendo que parte do período transcorreu no sítio da família em Murta, no interior de Passa Sete, a cerca de cem quilômetros de Santa Cruz. Lá, em dezembro de 2013, a família se reuniu com os convidados e mais um casal, o professor de Sociologia da Unisc Caco Baptista, 58, e a professora de Educação Infantil Marisa Oliveira, 50. À noite, na sala, depois de comer salmão ao molho de maracujá, o grupo botou para tocar o vinil Alucinação. "Belchior, tu tens noção do que significa esse momento para nós, que somos teus fãs?", perguntou Marisa, que horas antes tinha visto o ídolo colher cebolas roxas na horta.
– Lembro que ele riu e bebeu um gole de vinho. Foi muito marcante – emociona-se a professora.
No outro dia, durante uma caminhada, Belchior apontou para o gramado e disse:
– Meu sonho é construir uma torre de livros aqui e ficar para sempre.
Ali, anônimo, ele circulava na área externa, algo que nunca fazia em Santa Cruz. Imitava o som dos passarinhos, colhia verduras, ouvia um radinho de pilha e até cogitava gravar um clipe. Nem mesmo o agricultor Francisco Cremonese, o Chico, 59 anos, vizinho que volta e meia aparecia para ver se estava tudo bem, sabia quem era.
– Um dia entreguei uma carpa capim para os dois. Se soubesse, tinha pedido autógrafo – brinca.
Segundo os anfitriões, os visitantes nunca pagaram por nada e viviam com pouco. Ganharam roupas do irmão de Bira, comerciante em Sobradinho. De Ingrid, recebiam marmita todos os dias. Belchior, que adorava cuca de uva, não fazia qualquer exigência.
– Era muito simples, gentil e extremamente inteligente. Parece que abriu mão das coisas materiais. Nunca vamos esquecer dele – diz Bira.
A família guarda com carinho algumas lembranças, como um de seus pijamas, autógrafos em LPs, um bilhete para Marina. A universitária chorou muito com a morte do músico. Foi por influência dele que ingressou no curso de História da Arte, na UFRGS:
– Ele sugeriu que eu fizesse meu trabalho de conclusão sobre cantores que pintam e disse que aceitaria participar. Infelizmente, não foi possível.