O Belchior ainda mora em Porto Alegre? Espero que sim. Ontem, a Marcinha estava vendo uma novela da Globo, aqui em casa, e ouvi que do fundo de alguma cena se evolava Coração Selvagem, clássico imortal de Belchior. Quem cantava era uma mulher de voz grave e macia. Achei que fosse a Zélia Duncan, mas depois descobri que se tratava da Ana Carolina.
Fiquei feliz em saber que Belchior está sendo ouvido hoje, no Brasil. As canções do Belchior me emocionam, e ele também. Ele parece ser um homem puro, sem malícia, quase uma criança. Digo isso a partir de suas entrevistas, não o conheço pessoalmente. Quase o conheci.
Uma vez, há tempo, muito tempo, nós estávamos fazendo uma festa na casa do meu amigo Nei Manique, em Criciúma, quando o Belchior chegou. O Nei, além de ser um dos irmãos que ganhei da vida, é um grande jornalista. Nos anos 1980, era também grande festeiro. A casa dele funcionava como espécie de sede social da turma. As festas iam longe e iam animadas. Para a vizinhança pensar que não passava de uma comemoração inocente, de tempos em tempos cantávamos Parabéns a Você. Um dia, cantamos às oito da manhã, enquanto eu preparava Miojo Lámen, "para dar uma rebatida".
Bem. Naquela noite que citei antes, madrugada já, em meio à esbórnia, um Fusca encostou na frente da casa do Nei. Dele saltou uma menina, que anunciou, empolgada, que o Belchior estava acomodado no banco do carona, esperando para entrar na festa. O Nei deu de ombros:
- A festa acabou. Não entra mais ninguém.
E voltou para dentro de casa. Quando ele me contou que havia dispensado o Belchior, dei um tapa na testa:
- Pô! Eu adoro o Belchior! Ia pedir pra ele cantar Coração Selvagem!
Foi Coração Selvagem que ouvi aqui, no norte do mundo. Que música linda. Num trecho do poema, que a letra é um poema, ele pede para a amada: "Esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão". Fico imaginando a moça batendo à porta do apartamento dele e, quando ele abre, a vê sorrindo, com as duas mãos segurando as bordas do blusão, onde está escondido o beijo. Bonito.
As letras de Belchior são comoventes. Elis foi a primeira a descobrir isso. Mas é da pessoa que quero falar. Belchior, você sabe, andou sumido, e creio que ainda continua meio fora de circuito. Dá a impressão de ter desistido da vida que levava.
Tenho a pretensão de compreendê-lo.
Este mundo não é fácil. As pessoas são tudo, menos cristalinas, e, por mais que você tenha certeza do que é o certo, nunca é certo que conseguirá fazê-lo e, se fizer, não é certo que acertará.
A vida, definitivamente, não segue em linha reta.
A selvageria do coração de Belchior não é a selvageria do tigre e do leão, é a selvageria do cervo e do passarinho, do bicho pacífico e arredio, que não fará mal ao homem, mas não será domesticado. Este mundo não é para seres humanos como Belchior. Ele não se encaixa nas exigências desta vida e, assim, afastou-se delas. O coração de Belchior é como vidro, como um beijo de novela. Por isso, por não aguentar, Belchior desistiu.
Pelo menos é o que sinto. Porque, como Belchior, às vezes também tenho vontade de pedir para a vida: "Vida, pisa devagar. Meu coração, cuidado, é frágil".