A sabedoria talmúdica ensina que quem salva uma vida salva a humanidade.
É algo assim que o leitor sente ao terminar de percorrer as 344 páginas de Cova 312 (Geração Editorial), da jornalista mineira Daniela Arbex. Não que ela tenha evitado algum óbito. Mas, de certa forma, recupera uma vida - e destrói uma versão de suicídio montada com astúcia pelo regime militar brasileiro.
Ao pôr o ponto final na emocionante história repleta de descrições, em meio a sorvidas do chimarrão amargo acompanhado do pé-de-moleque doce divididos com familiares do protagonista, Daniela leva alento para a família do guerrilheiro Milton Soares de Castro, o único civil a participar da guerrilha do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo. Fica-se sabendo que Castro, um jovem de Santa Maria, não se matou, como rezava a versão oficial, mas foi morto, e seu corpo estava enterrado na sepultura 312, quadra L, do cemitério municipal de Juiz de Fora (MG).
Aqui, é interessante abrir um parêntese: Juiz de Fora é a cidade de onde o general Olímpio Mourão Filho partira com seus tanques, em 31 de março, para efetivar o golpe em 1º de abril de 1964 e a ditadura que imporia a noite de 21 anos.
Cova 312 é um livro que mexe com sentimentos. Nas primeiras páginas, a autora entra no cárcere de Linhares, onde décadas atrás havia presos políticos. Na época da ditadura, a vizinhança mantinha as janelas fechadas, temendo aqueles que enfrentavam o regime de exceção. Hoje, quando há presos comuns, não existe esse medo. Eram o desconhecimento e o preconceito que assustavam e permitiam a manutenção de uma ditadura.
Na página 33, Daniela faz a apresentação detalhada do protagonista. Descreve a vida, as relações familiares, individualiza, humaniza e emociona. Sempre parte do individual para o universal. O texto é tão franco, que ela não se priva de fazer uma declaração que, em termos jornalísticos, provoca reflexões. No "making off" permanente do livro (uma das suas qualidades), relata o episódio em que se apieda da fonte, um sobrevivente da repressão, e põe, ela própria, uma blusa no homem, um trapo humano mal-vestido, para tirar a fotografia da reportagem. Fica claro que Daniela, trocando uma blusa furada, quer mudar a realidade, melhorá-lha. Pergunto: ela estava certa? Como colega de profissão, este resenhista confessa que, naquelas circunstâncias, faria o mesmo. Gol da autora! O gesto tem a motivação do livro: dar dignidade a quem a perdeu. Daniela pôs vida no texto. Envolveu-se no limite correto. Reconheceu as contradições da guerrilha e não escamoteou atos reprováveis dos militantes. Quem ganha é o leitor.
Mas vamos à história de Castro, que na foto acima é o jovem que segura uma mochila. Fazia exatos três anos que a ditadura havia sido instaurada quando, em 1º de abril de 1967, o santa-mariense foi preso com sete companheiros e levado para a Penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora. Em 28 de abril, a notícia aterradora: Castro teria cometido suicídio. A família jamais aceitou a versão oficial. Nem Daniela. Desde 2002, ela tratou de investigar e reescrever a história. Empenhou-se na tarefa como quem se joga numa missão. O resultado foi uma série de reportagens publicada na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora. Desde então, sabe-se que o corpo de Castro estava numa cova rasa, enterrado como indigente. Daniela desmonta a tese do suicídio. Faz coro com a família do protagonista. Para o leitor, traz um naco triste da nossa história.
Pela penitenciária de Linhares, passou gente como o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel. Mas Daniela não se ateve ao palco dos suplícios. Avançou até localizar a sepultura. Tratou-se de um feito. As autoridades da época chegaram até a usar o nome de um sargento que dera baixa do exército para mascarar a identidade de quem jazia ali. E foi ainda adiante, sempre argumentando que a história poderia ter terminado para o jornal, mas não para ela. Localizou a decisiva foto da necropsia de Castro. Mais: encontrou os peritos e provou que, sim, as suspeitas de amigos e familiares se justificavam.
Castro fora assassinado na prisão.
Quem era Castro: o santa-mariense, filho de uma família com poucas posses, não foi além do primário. Mas, inteligente, embrenhou-se pela política e se inconformou com a injustiça social e com a falta de liberdade. Tinha só 23 anos quando, em 1965, já vivendo em Porto Alegre, tornou-se frequentador das reuniões da Associação Operária e Cultural da Vila Jardim, bairro popular que se notabilizou por acolher os recém-chegados à capital gaúcha. Ali, fez sua formação marxista. E entrou para a luta armada como tantos outros daquela época que não viam alternativa a ela. Em setembro de 1966, foi o único civil a seguir para a Serra do Caparaó. Deveria fazer o reconhecimento do palco da guerrilha. O cenário que se tornou a imagem da frustração. Naquele 1º de maio em que Castro foi preso para nunca mais voltar, restavam oito guerrilheiros. Os demais haviam desistido em meio às adversidades. Tanto Caparaó quanto os integrantes da luta eram quase anônimos, até Daniela resgatá-los.
Em Linhares, militantes de grupos como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Comando de Libertação Nacional (Colina) sucumbiram à tortura. Contavam, paradoxalmente, com a cumplicidade solidária dos colegas de infortúnio. Era a "República Comunista de Linhares". Até o pão eles dividiam de forma equitativa. E relatos das torturas começaram a vazar, o que levou os algozes a recrudescerem os suplícios. A morte de Castro correu o país. Apesar de o suicídio ser um despiste para o assassinato do guerrilheiro gaúcho, encontrado com um lençol grosseiramente pendurado no pescoço para aparentar estrangulamento um dia após ter sido chamado a depor na noite de 27 de abril, ali começava a ficar claro que algo de muito errado ocorria na penitenciária mineira.
Daniela foi persistente. Buscou informações da Justiça Militar. Pôs as mãos nos documentos. Havia 15 fotografias reveladoras de Castro durante a necropsia. Chamou a atenção que, apesar de a versão oficial ser de suicídio, o laudo se limitava a dizer que o guerrilheiro havia sido estrangulado. Mas por quem? A jornalista foi atrás. Após negativas de outros envolvidos, o ex-perito da Polícia Civil Luzmar Valentim de Gouvêa, 78 anos, disse não se lembrar do caso, mas se dispôs a analisar as imagens e começou a destruir a farsa.
Enforcamento poderia ter ocorrido, mas não suicídio. Foi a mesma conclusão que levou ao desvendamento do rumoroso assassinato posterior do jornalista Vladimir Herzog no Doi-Codi de São Paulo, em outubro de 1975. Ora, Castro tinha mais que 1,75m. Como poderia ter se enforcado com o improviso de corda amarrado a uma torneira com 1,20m de altura? Não só isso. O pano que serviu para fazer a tal corda tinha 30 centímetros. É matemática. Não fecha. A invenção dos carcereiros tinha a grosseria de quem se considera impune.
A persistência do jornalismo de alta qualidade mostra que eles não eram.