“A vida de um cientista no Brasil é ouvir diariamente que tu nunca vais conseguir fazer nada relevante e, apesar disso, seguir em frente e conseguir.” A frase da Márcia Barbosa, professora titular de Física da UFRGS, ressoa profundamente por ser tão verdadeira. Eu conversava com ela ao telefone, parabenizando-a por ter sido escolhida pela ONU uma das sete mulheres que fazem ciência que muda o mundo. Nesse grupo, estão Marie Curie (única pessoa a ganhar dois prêmios Nobel em áreas diferentes, química e física) e Katherine Johnson, matemática negra americana responsável pelos cálculos que colocaram o homem na Lua. Resposta típica da Márcia: “Pois é, fiquei sabendo pela internet, como todo mundo”.
Essa é a Márcia. Inabalável por elogios ou críticas, focada na paixão que tem em entender as propriedades complexas da molécula de água. Água é algo estranho, costuma dizer. Tem mais de 70 anomalias, uma delas é a menor densidade em estado sólido do que líquido. Sabemos que gelo flutua na água – e isso se explica por propriedades físico-químicas particulares da combinação de um oxigênio com dois hidrogênios. O trabalho tem olhos no presente e no futuro. Água potável é cada vez mais rara – e cara. Não existe vida sem água; mas poluímos os ambientes aquáticos como se ela fosse infinita. Atualmente, plantas que dessalinizam água são gigantescas, existentes em países altamente tecnológicos, como EUA e Israel. Márcia estuda o quanto é possível diminuir essas instalações, criando uma nova estrutura molecular para os filtros, de forma que, mesmo em cidades pequenas, isso possa ser feito de modo eficiente e barato.
Márcia é física teórica. Como Einstein, ela desenvolve a matemática que explica um fenômeno para que seus colaboradores e colaboradoras usem instrumentos que geram os dados experimentais, mais tarde usados pelos engenheiros e engenheiras para construir os filtros. Assim se avança no conhecimento, se empurram as fronteiras da tecnologia e se muda o mundo.
A outra grande paixão de Márcia é que as mulheres sejam parte desse processo. Filha de eletricista, que adorava que a pequena fosse sua ajudante, aprendeu cedo com o pai o prazer de descobrir como as coisas funcionam. Marcia teve papel fundamental quando, há 20 anos, a União Internacional de Físicos lançou uma iniciativa para aumentar o numero de mulheres na Física. Única jovem no grupo de físicos renomados, que representavam seus países de origem, apresentou-os ao uso da internet para localizar e colocar os novos núcleos em rede mundial. Isso resultou em um prêmio da Academia Americana de Física. Em seguida, Márcia recebeu o prestigioso Prêmio L’Oreal de Mulheres na Ciência pelos estudos com água. No discurso, frisou a importância de não alijar 50% da população do maravilhoso mundo das descobertas. A declaração despojada atraiu a imprensa francesa e repercutiu no mundo todo. Um longo caminho para a menina que montou o laboratório do colégio público Marechal Rondon, em Canoas. E que faz questão de lembrar a todos que ciência é, sim, coisa de mulher.