Principal cultura agrícola do Rio Grande do Sul, a produção de soja obteve um desempenho superior nesta safra em relação ao ciclo passado - apesar da enchente que devastou boa parte da agropecuária gaúcha. O recorde que estava previsto inicialmente não se confirmou em função do excesso de chuva, mas ainda assim trata-se de um dos maiores volumes já colhidos no RS. Passada a enchente, o tamanho da safra fica mais visível, assim como a certeza de que a retomada da economia terá como um dos seus pilares a produção primária.
Ainda que o efeito da cheia tenha sido nefasto para mais de 200 mil propriedades rurais, parcela significativa da safra de verão foi preservada porque já havia sido colhida. A inundação veio na finalização do ciclo e atingiu com menos força as principais regiões produtoras. No início da colheita, a projeção era de um recorde de 22,2 milhões de toneladas de soja (uma recuperação após duas estiagens), o que não chegou a ocorrer. Ainda assim, o ciclo 2023/2024 está entre os maiores da história do RS, com 19,5 milhões a salvo, conforme o diretor técnico da Emater, Claudinei Baldissera. Na conta da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), alívio parecido. A projeção próxima a 23 milhões de toneladas do grão foi recalculada para 20,1 milhões no Estado.
Maiores safras de soja no RS
- 2021: 20.420.501 toneladas
- 2017: 18.744.186 toneladas
- 2019: 18.498.119 toneladas
- 2018: 17.538.725 toneladas
- 2016: 16.209.892 toneladas
Fonte: Emater/IBGE
A soja é o principal produto agrícola gaúcho e o seu ciclo aquece a economia do plantio até a colheita. Depois, com a comercialização da semente, reverte-se em dinheiro que circula na indústria, no comércio e nos serviços das cidades durante o ano todo. Em 2024, o Brasil completa cem anos da soja no país, com pioneirismo do RS no cultivo comercial do grão.
— A nossa produção não começa e nem termina na fazenda. Ela começa na indústria e nos serviços e termina neles de novo — diz o economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Antônio da Luz, sobre a complexidade da cadeia.
O efeito das safras está no pequeno e no grande município. No mês de abril, antes da enchente, a reportagem de Zero Hora percorreu mais de 1,2 mil quilômetros em busca do efeito macroeconômico do grão. No trajeto, observou cidades onde o aperfeiçoamento da produção alavancou o desenvolvimento nos últimos anos e uma série de empregos movidos por ela. Agora que a água baixou, a riqueza gerada pelo grão será ainda mais importante para reerguer o Estado.
O que foi colhido é, sim, um meio de alavancagem do Estado.
EDUARDO CONDORELLI
Superintendente do Senar-RS
— Com certeza, ajudará a dar fôlego econômico. E isso ajuda muito a não enxergar que o caos há de se implantar por completo no setor agropecuário — afirma o superintendente do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-RS), Eduardo Condorelli.
PIB per capita dos campeões
Na pacata Muitos Capões, o único som que rompe o silêncio e o canto dos pássaros é o ronco dos caminhões graneleiros. O município próximo a Vacaria e Lagoa Vermelha, nos Campos de Cima da Serra, é um dos que experimenta um salto econômico a partir da soja.
O PIB de Muitos Capões passou de R$ 724,7 milhões em 2020 para R$ 1,12 bilhão em 2021, saltando da 110ª para a 99ª posição no ranking das economias gaúchas de um ano ao outro, conforme números do Departamento de Economia e Estatística, vinculado à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (DEE/SPGG).
Foi o segundo maior PIB per capita entre os municípios gaúchos em 2021, em R$ 352,4 mil, atrás apenas de Triunfo. O PIB per capita ajuda a avaliar o padrão de vida da população local.
A região vive este boom pelo cultivo relativamente recente da soja, antes dificultado pela própria geografia e pelo protagonismo da pecuária. O movimento tem reflexos no preço da terra, mais valorizada na última década, lembra o pesquisador do DEE/SPGG, Rodrigo Feix:
— Muitos Capões é um município que teve aumento de renda muito forte nos últimos anos em função do dinamismo do agronegócio, inclusive com fábrica de biocombustíveis se instalando lá. É um transbordamento do agro em outros setores que se reflete na economia.
Nos limites do município, a fábrica da Bocchi Agrobios é um dos destinos para a produção. Com 14 unidades no Estado, a empresa mantém em Muitos Capões a sua esmagadora, que transforma soja em farelo, casca e óleo de soja, e a usina que produz biodiesel e glicerina.
O incentivo ao uso de combustíveis alternativos é motor. A planta de Muitos Capões está em processo de ampliação de capacidade produtiva — tanto em esmagamento de soja quanto em produção de biodiesel. Segundo a diretora comercial, Fernanda Bocchi, a produção do biocombustível será de 500 mil litros a partir do segundo semestre deste ano. Já o esmagamento terá capacidade de 3 mil toneladas ao dia.
— Por muito tempo o Estado apenas exportava soja e isso tinha um valor agregado menor. Com esse novo olhar, usinas como a nossa fortalecem a região, dão garantia ao produtor rural para o destino da produção dele, e os segmentos em volta se movimentam — diz Fernanda.
Agricultura em evolução
O produtor Franco Francisco Stedile, 67 anos, é testemunha da evolução da agricultura no Estado. À frente da Fazenda Três Rios, propriedade tocada por um grupo familiar, ele viu a região dos Campos de Cima da Serra abrir o espaço da pecuária para a agricultura, embalada por um cultivo cada vez mais atento às tecnologias e à sustentabilidade da produção.
A propriedade iniciada pelo pai de Franco divide suas terras entre os municípios de Muitos Capões, Vacaria e Esmeralda. São 6 mil hectares dedicados à atividade agropecuária, 4 mil deles somente para o cultivo de soja.
— Quando chegamos, há 46 anos, éramos cinco produtores rurais e o restante produtores de gado. Tanto que a cidade se chama Vacaria. Gradativamente, o agricultor do grão foi se sobrepondo à pecuária e a inversão do processo foi real. Mudou totalmente a configuração e a economia da região — observa Stedile.
A chuva em excesso entre abril e maio não passou incólume na propriedade. Os mais de 900 milímetros que caíram na região afetaram cerca de 15% da área plantada de soja. Por sorte, mais de 85% já tinham sido colhidos quando as precipitações começaram.
— Uma safra que era especial ficou apenas normal — relata o produtor.
Assim como nos Campos de Cima da Serra, o avanço da soja se dá também na metade sul. Mas não se trata de nova fronteira agrícola, e sim de uma mudança de modelo produtivo, avalia Fernanda Assaife, chefe da sessão de pesquisas agropecuárias do IBGE no Rio Grande do Sul.
Nessas regiões, o cultivo da oleaginosa está dividindo espaço com a pecuária ou mesmo tomando áreas de outras culturas, como o arroz. Em 2006, a área de produção ocupava 3,8 mil hectares de soja no Rio Grande do Sul, chegando agora aos 6,6 milhões. Dom Pedrito, tradicional na pecuária, levou para a Campanha a maior área plantada do grão na safra 2023/2024. O cultivo cresceu mais de sete vezes nos últimos 12 anos no município.
— É um produto que, sem dúvida, vem crescendo muito nos últimos anos. É uma mudança de padrão produtivo, com avanços em áreas substituindo lavouras como feijão e milho, biomas e terras baixas, coexistindo com o arroz. A soja é fácil de trabalhar e tem muito mercado, porque agrega mais elos econômicos — explica Fernanda.
Trabalho sem fronteiras
É na rotina dividida entre a lavoura e a faculdade que o operador de colheitadeira e estudante de Agronomia Fernando Pontalti, 31 anos, traça os seus dias. Apaixonado pelo trabalho no campo, ele vê o dia a dia na lida como oportunidade de crescimento.
— Estar aqui me abriu as portas. Tudo o que sei hoje eu aprendi aqui. Nunca imaginei operar uma colheitadeira — contou à reportagem do alto da cabine de uma das máquinas na Fazenda Três Rios, em Muitos Capões.
Junto com outros milhares, Pontalti é uma das linhas que move uma trama extensa de trabalho relacionada ao agronegócio. Uma rede que gira empregos e renda dentro e fora do campo e que faz o sucesso das colheitas alimentar uma série de setores econômicos.
O aparato cada vez mais moderno nas fazendas exige uma mão de obra que entenda das novas tecnologias. Dividindo-se entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, o eletricista de máquinas agrícolas e tratores fixado em Bagé Cristiano Gonçalves, 43 anos, experimentou uma guinada de vida quando migrou o serviço dos carros convencionais para o maquinário agrícola.
Desde então, trabalha como uma oficina móvel: desloca-se de propriedade em propriedade, por ordem de urgência na colheita, e assim cultiva uma agenda extensa de clientes na metade sul do Estado e fora dele, nos vizinhos uruguaios — onde fatura em dólar. No fim desta safra, quando a chuva ainda só ameaçava inundar as lavouras, a corrida pela colheita fez triplicar o trabalho.
— Se eu desligasse o meu telefone hoje, ainda assim teria trabalho até o fim do ano — diz o profissional.
A falta de mão de obra especializada é uma das preocupações no setor. Sobram oportunidades, mas carecem profissionais que dominem atividades específicas nas lavouras, como as relacionadas a alta tecnologia. Ao mesmo tempo, crescem as ofertas de cursos técnicos e de ensino superior que foquem especialmente nas necessidades do agronegócio.
— O criador deixou de ser produtor para ser um transformador que se vale do trabalho de inúmeros setores. Temos convicção de uma tendência de que os postos no meio rural se estabilizem no muito longo prazo. Entretanto, os que ficam nas propriedades são cada vez mais bem remunerados — diz o superintendente Senar-RS, Eduardo Condorelli.