Uma análise abrangente dos processos de degradação ambiental do planeta. Essa foi a tarefa a que se propôs Marco Moraes, autor do livro Planeta Hostil: Como as ações humanas estão mudando a Terra e fazendo dela um lugar imprevisível e perigoso (Matrix, 2024). O geólogo e cientista gaúcho é formado pela Universidade Federal da Bahia, tem Ph.D. pela Universidade de Wyoming, dos Estados Unidos, é autor de dezenas de artigos e tem se dedicado a estudar as transformações do planeta.
As mudanças climáticas estão no centro das atenções porque têm impactado a população mundial de maneira dramática. Contudo, há outras consequências do aquecimento global que também deveriam causar preocupação, defende o escritor.
Em entrevista a Zero Hora, Moraes listou outros problemas tão graves quanto as mudanças climáticas, versou sobre a possibilidade de extinção da raça humana e abordou a possibilidade de grandes inundações atingirem novamente o RS.
No livro, você afirma que o cenário é muito pior do que imaginamos. Por quê?
As mudanças climáticas preocupam todo mundo, com toda razão, porque estão acontecendo à nossa volta. Mas há muito mais coisas acontecendo, algumas óbvias, mas outras bem mais silenciosas ou sutis. Por exemplo, a crise da biodiversidade, a gente vê uma parte, mas não tudo, não vê o que está acontecendo nos oceanos e com os pequenos seres. A destruição dos ecossistemas marinhos e terrestres, em que há uma composição do aquecimento global com a ação humana. Estamos perdendo cerca de 24 bilhões de toneladas de solo todos os anos, devido à ação humana, mas também ao ressecamento do ar e à perda da vegetação. E os solos armazenam 4 trilhões de toneladas de carbono. A gente está jogando esse carbono no ar, em um sistema de retroalimentação que vai tornando as coisas cada vez piores.
Temos de cuidar dos solos, das florestas, do mar, para não só manter o planeta em condições razoáveis de habitação, mas também para manter a exploração econômica, a produção de alimentos para toda a humanidade.
MARCO MORAES
Geólogo e cientista gaúcho
O degelo, a subida do nível do mar, que está afetando áreas litorâneas. A poluição química e plástica. Existe uma quantidade enorme de produtos químicos, como os poluentes orgânicos persistentes, que são usados em plásticos, tintas, revestimentos de panelas, ou seja, estão dentro das nossas casas, que são cancerígenos, que causam distúrbios hormonais. A poluição do ar, por exemplo, mata 9 milhões de pessoas por ano no mundo. São 450 vezes mais do que o número que morre por eventos climáticos. Não podemos focar em uma coisa só, porque estamos sendo afetados pelo todo. A minha tentativa é mostrar que a situação é realmente muito grave, muito abrangente e requer conhecimento, para que a gente se prepare para o que está por vir, mas também para agir, para evitar que a situação fique muito mais grave.
Algumas pessoas alegam que o aquecimento global é falso, porque há ondas violentas de frio sendo registradas. Outros alegam ainda que o que vivenciamos hoje é um ciclo natural do planeta, que intercala períodos muito quentes e frios, mas, no livro, você desmascara essa alegação. Qual é o papel do ser humano nas transformações da Terra?
Hoje está muito claro que o rápido aquecimento que está sendo observado se deve à injeção de gases, principalmente de efeito estufa pelos humanos. Os outros ciclos, naturais, são de uma ordem de magnitude menor, abaixo do efeito da injeção desses gases. Então, está muito claro que somos nós, humanos, que estamos provocando esse aquecimento. Não é um ciclo natural, está sendo muito rápido, e as mudanças climáticas são uma consequência previsível do aquecimento. Porque, se aumenta a quantidade de umidade do ar, aumentam os contrastes de temperatura, e coisas como as frentes frias mais intensas, porém mais curtas, como temos observado, são exatamente consequência do aquecimento. Porque o ar mais aquecido empurra, sobe em direção à zona polar, e aí, desce o ar frio como consequência dessa ação. Ou seja, é uma perturbação no chamado vórtice polar, que é uma célula de circulação de ar em torno dos polos, e por isso as frentes estão chegando tão frias, tão rápido, mas, por outro lado, são curtas. É um fenômeno também previsível em função do aquecimento da atmosfera.
Quais são as consequências das mudanças climáticas? Quais já conseguimos ver no Brasil hoje?
No Brasil, 2024 está sendo referência em termos de tragédias climáticas. Os principais eventos são tempestades e chuvas mais intensas, que nós vimos no Sul, ondas de calor e, consequentemente, secas e queimadas, que também são algo muito preocupante.
A tendência é que os eventos que historicamente ocorriam vão continuar ocorrendo, mas de forma mais intensa, e que períodos de chuva, tempestade e ondas de frio sejam mais intensos, porém mais curtos, entremeados por longos períodos de estiagem.
MARCO MORAES
Geólogo e cientista gaúcho
Por exemplo, o Rio Grande do Sul, com uma mudança de padrão para o La Niña, pode entrar em uma fase de estiagem e calor, estamos vendo isso. O RS, em 2023, teve três ou quatro eventos de chuvas intensas e vários de ondas de calor, inclusive no inverno. E a estiagem preocupa muito, porque precisamos de água não só para beber, mas para gerar eletricidade, mover as indústrias, para a agricultura. É um novo padrão que já está visível.
O RS viveu uma enchente catastrófica em setembro do ano passado, e outra, mais abrangente ainda, pouco mais de meio ano depois. Isso vai tornar a acontecer em breve? Com frequência?
Os anos não vão ser iguais, o cenário não vai ser progressivo. O RS teve a maior tragédia de chuvas em 2024, não quer dizer que 2025 vai ser igual ou mesmo 2026, porque devemos estar em anos de La Niña, e agora apareceu uma La Niña no Atlântico. Mas, como um todo, as coisas tendem a piorar, porque os gases de efeito estufa vão ficar na atmosfera por centenas de anos, e nós continuamos injetando esses gases. As previsões são de que até 2050, que tem sido um ano de referência para o zero carbono, vamos continuar consumindo petróleo e, consequentemente, emitindo a mesma quantidade de gases. Ou seja, as coisas tendem a piorar, embora com variações que são normais em um sistema complexo como o atmosférico. As perspectivas são de que vai tornar a acontecer. Evidentemente, como cientista, não posso fazer previsões exatas, falamos sobre possibilidades.
Tem de se considerar duas coisas: a possibilidade de esses eventos ocorrerem com mais frequência é cada vez maior, e nós devemos nos preparar para o pior. Porque não adianta ficar torcendo para que as coisas não aconteçam.
MARCO MORAES
Geólogo e cientista gaúcho
É como se faz em segurança, você tem de estar preparado para a pior possibilidade. É muito importante isso, não ter complacência, não relaxar agora, não é porque passa um ou dois anos sem acontecer que não vai acontecer novamente, ou que vai demorar dezenas de anos. Devido a toda a gravidade da situação, a gente tem de se preparar, porque a possibilidade é grande de que esses eventos ocorram com uma frequência muito maior. Lembrando, Porto Alegre teve aquela grande enchente de 1941. A previsão é de que ela ia ocorrer daqui a 300 anos. Ocorreu em 80. É tudo probabilidade, provavelmente não vai ocorrer ano que vem, nem no ano seguinte. Mas temos de estar preparados porque vai acontecer novamente, e não vai demorar tanto tempo.
Podemos vir a enfrentar a extinção?
Podemos sofrer extinção. Se continuarmos injetando gás de efeito estufa na quantidade que estamos injetando, um planeta aquecido a 3ºC, 4ºC vai ser inóspito, vai ter grandes áreas, principalmente nos trópicos, onde o Brasil está incluído, que vão ser inviáveis para a vida humana. Simplesmente as pessoas morreriam de calor se ficassem morando nesses lugares. Então, estamos com uma perspectiva muito ruim de tornar grandes áreas do planeta inviáveis se nós não mudarmos o rumo. Mas o que eu espero é que a gente comece a agir de maneira mais efetiva para mudar esse quadro.
A resposta, o que fazer, é muito simples: deixar de fazer o que está fazendo errado. Como fazer isso é mais complicado, mas é viável, está dentro das nossas possibilidades. O que vai acontecer com o planeta depende de nós.
MARCO MORAES
Geólogo e cientista gaúcho
E as pessoas, às vezes, falam que o meu livro é sombrio, traz um quadro arrepiante, sem dúvida, o livro mostra uma situação muito grave. Mas eu não me daria ao trabalho de descrever todos esses problemas se não acreditasse que podemos encontrar as soluções. Aí temos de ser realistas, mas otimistas, ou otimistas realistas, ou seja, temos de saber, e essa é a proposta do livro, qual é a verdadeira situação e temos de agir. E eu acredito que nós vamos agir. Agora, como será essa ação? Quanto de tragédias e perdas nós teremos de enfrentar para que a gente realmente se dê conta de que é preciso uma mobilização muito maior do que a que está tendo até agora e ações efetivas muito maiores? Porque temos visto muitos discursos, compromissos, acordos. Recentemente houve um pacto dos três poderes no Brasil, um manifesto de empresários e economistas pela proteção do ambiente etc, mas precisamos agir. Todos nós somos influenciadores de alguma forma, todos nós somos cidadãos, todos nós vamos votar. Todos temos alguma forma de agir para não deixar que a situação chegue a um ponto de tornar esse planeta não apenas hostil, mas em grande parte inóspito, inapropriado para a vida humana. E essa é a perspectiva do que vai acontecer se a gente continuar da forma que está hoje.
Se seguirmos nesse ritmo, quanto tempo levaria para causar a nossa extinção?
Isso é muito difícil de prever, porque a extinção, nesse quadro que falei, em que grandes áreas do planeta ficarão inóspitas, não quer dizer que outras não sejam habitáveis. Vai haver pessoas migrando desesperadamente para outras áreas, o que deve causar guerras, revoltas, muita violência. É um cenário muito catastrófico, mas não é completamente inviável para que parte dos humanos continue sobrevivendo. E com o avanço da tecnologia, não sabemos como vamos ser capazes de lidar com essas coisas. Então, é uma previsão muito difícil de fazer. Eu não acho que a espécie humana vai ser extinta, porque acho que a evolução tecnológica vai propiciar alguma forma de a gente sobreviver. Muitas áreas ainda vão ficar habitáveis, embora o planeta não vá sustentar 10 bilhões de pessoas. Vai haver uma redução muito grande da população.
Nós somos uma espécie muito jovem, aparecendo no planeta há pouco mais de 100 mil anos, e a duração média de uma espécie na história geológica é de 1 milhão de anos. Seria uma catástrofe desaparecermos tão rapidamente.
MARCO MORAES
Geólogo e cientista gaúcho
Acho que podemos sobreviver e eventualmente voltar a regenerar o planeta. Mas existe o risco, acho que é uma possibilidade pequena, mas há um risco que também tem de ser considerado.
Você afirma que a transformação da Terra é inevitável. Ainda há tempo de mudar?
A transformação já é inevitável, porque tem coisas que não vamos poder retornar, pelo menos no curto prazo. Uma delas é o aquecimento. Já injetamos os gases de efeito estufa, eles vão ficar na atmosfera e retirá-los é um processo muito caro, não vai acontecer em curto prazo. Espécies que já foram extintas não poderão ser recriadas, pelo menos no curto e médio prazo. Em um horizonte de cem anos, o planeta já está e vai se transformar e ficar mais hostil. Mas o que temos de fazer é trabalhar duro para que não fique muito pior. A minha expectativa é que lá no final do século 21 a gente veja o planeta sendo já bastante regenerado. Então, as coisas vão ficar piores, temos de nos preparar para isso, mas elas podem ser revertidas em grande parte, e podemos ter um planeta muito mais saudável, agradável e muito menos hostil para a vida humana. Podemos construir isso ao longo deste século, é responsabilidade de todos nós. Enquanto você estiver vivo, você tem de lutar por um planeta melhor. Acho que não existe nenhuma missão mais nobre do que essa para todos nós.