Episódios de chuva e vento que causam cheias e deslizamentos, que carregam casas e carros, o que culmina em mortes – ao menos 191, além de dezenas de desaparecimentos, desde junho de 2023. Se já vinham dando indícios de aumentarem desde 2015, no ano passado as enchentes se tornaram rotina no Rio Grande do Sul, dando sinais de que vieram para ficar. Entre especialistas, a compreensão é de que os parâmetros de monitoramento desses fenômenos mudaram, e um alerta é dado em uníssono: é urgente priorizar o investimento em sistemas de prevenção, mitigação e adaptação ao “novo normal”.
Causadoras dessa transformação, as mudanças climáticas – termo que significa, em resumo, que o globo está mais quente e que isso faz com que o clima tenha seu comportamento alterado – se manifestam de formas diferentes. De modo geral, são eventos extremos: há regiões com mais ondas de calor, ou secas duradouras em lugares onde elas não aconteciam, ou chuvas intensas em menos tempo. O alerta de ambientalistas para esse cenário é dado há pelo menos 30 anos, tempo no qual tendências foram observadas e conclusões tiradas sobre como adaptar as populações e as cidades a essa nova realidade.
– Devemos entender, nesse diálogo entre ciência e realidade, o que precisamos adaptar em cada região e rever nossos planejamentos. O Brasil está em processo de atualizar seu Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, mas, infelizmente, poucos Estados têm planos estaduais, e o Rio Grande do Sul não é um deles – lamenta Walter De Simoni, líder especialista de políticas climáticas do Instituto Clima e Sociedade (ICS).
De Simoni é categórico: são se deve gastar mais um real em infraestrutura, seja em pontes, moradia ou outras edificações, sem se levar em conta a adaptação à nova realidade, sob risco de se construir algo que, em cinco ou 10 anos, estará debaixo d’água. Nesse planejamento, também é necessário traçar medidas claras e integradas entre entes públicos para situações de emergência, que precisam ser conhecidas por toda a população.
Se em junho, setembro e novembro o que causou óbitos e destruição em regiões como Litoral Norte e Vale do Taquari foram ciclones extratropicais, agora o que ocorreu foi um bloqueio atmosférico que manteve a nebulosidade por muitos dias nas regiões gaúchas. Em comum entre os dois fenômenos estão suas características de eventos extremos e atípicos.
No caso dos ciclones extratropicais, normalmente esses sistemas se formam no oceano e se afastam do continente. No ano passado, na situação ocorrida em junho, quando 15 pessoas morreram no Vale do Caí, Vale do Sinos, Litoral Norte e Região Metropolitana, o ciclone se comportou de forma anômala: nasceu no oceano e se movimentou para o continente, levando consigo muita umidade.
Em setembro, quando 54 óbitos foram registrados em regiões como Vale do Taquari, Norte e Serra, outra anormalidade fez com que o ciclone se formasse no continente e, depois, fosse para o oceano. O mesmo aconteceu em novembro, mês em que cinco mortes aconteceram em cidades da Serra, do Noroeste e da Região Metropolitana.
– É mais normal que o ciclone se forme no oceano e se afaste. Sempre que se fala em frente fria, temos associada a ela um ciclone extratropical, mas, muitas vezes, nem escutamos falar no ciclone, porque ele acaba só passando sobre o oceano. Se o ciclone se forma no continente, sistemas de baixa pressão se levantam e fazem com que nuvens muito carregadas se formem, provocando bastante chuva – relata Henrique Reinaldo, do Centro de Pesquisas e Previsões Meteorológicas da UFPel.
Já o bloqueio atmosférico verificado desde o final de abril faz com que sistemas que costumam passar pelo Estado permaneçam aqui por mais tempo, em vez de se deslocarem para Santa Catarina, Paraná e o Sudeste. Com isso, o calor da umidade se estabeleceu no RS, e nuvens de tempestade que durariam algumas horas se mantiveram por aqui durante vários dias.
Fenômenos como El Niño e La Niña acontecem como sempre aconteceram, favorecendo momentos de mais chuva e menos frio ou mais frio e menos chuva. A diferença, hoje, é que agravantes como o aumento da temperatura média global têm feito com que situações que costumavam ser atípicas se tornem comuns: se grandes cheias no Guaíba se repetiam a cada 60 a 80 anos, hoje podem ocorrer até mesmo duas vezes por ano. E, se as mudanças climáticas afetam o mundo inteiro, no Brasil, o Rio Grande do Sul é um dos locais mais atingidos.
– O Rio Grande do Sul está em uma faixa onde temos contrastes entre massas de ar mais tropical, que dominam o Brasil, e massas de ar polar que vêm da Argentina e do Uruguai. À medida que temos massas de ar cada vez mais quentes, esse encontro com as massas frias produz muita energia para a ocorrência de instabilidade e tempestade. O RS é uma região que, no futuro, terá cada vez mais fenômenos extremos – diz Reinaldo.
O Rio Grande do Sul é uma região que, no futuro, terá cada vez mais fenômenos extremos.
HENRIQUE REINALDO
Pesquisador da UFPel
Só que o futuro é agora. Apesar de não ser possível prever a regularidade com que situações extremas assolarão o Estado, está claro que elas têm acontecido com uma frequência maior – podem até se manter mais espaçadas em algum momento, mas, depois, tenderão a aumentar novamente.
Se as mudanças são evidentes e a perspectiva assusta, o investimento precisa ser alto. É preciso, por exemplo, ampliar a rede de estações e radares meteorológicos e o sistema de monitoramento hidrológico, para se identificar antes e com precisão quais fenômenos estão por vir e os seus impactos. Com isso, será possível prevenir perdas materiais e, especialmente, humanas.
Professor da UFRGS e integrante do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), Fernando Meirelles faz parte de um grupo de cientistas que tem monitorado e feito mapas interativos com as projeções da cheia do Guaíba em Porto Alegre, com simulações, ainda, para a Região Metropolitana. O pesquisador salienta que a famosa enchente de 1941 foi algo, na época, completamente “fora da curva”. Por isso, quando, nos anos 1970, construiu-se um sistema de proteção para a cidade contra cheias, a referência foi o ápice atingido naquele ano: 4m76cm de altura.
Com uma margem de segurança, se criou a “cota 6”, pensando estruturas como o Muro da Mauá, a freeway e as avenidas Castelo Branco e Beira-Rio com uma altura de seis metros em relação ao lago. Essa margem, porém, tem dado cada vez menos segurança à população.
– O que a gente observa é que, desde 2015, os eventos têm ficado cada vez mais graves, e isso altera a nossa percepção do que foi 1941, que antes se pensava que era uma cheia que se repetiria em 10 mil anos. Toda essa lógica, agora, garante um nível de segurança menor. Os dados históricos que usávamos estão sendo muito alterados. Três cheias em sequência realmente mudam a nossa percepção do que é a nossa hidrologia hoje – pontua Meirelles.
Desde 2015, os eventos têm ficado cada vez mais graves, e isso altera a nossa percepção do que foi 1941. Os dados históricos que usávamos estão muito alterados.
FERNANDO MEIRELLES
Professor da UFRGS
Entregue para a cidade em 1974, o sistema de comportas do Centro de Porto Alegre não precisou ser acionado em sua integralidade até 2015, quando o nível do Guaíba alcançou 2m93cm – pouco mais da metade do pico registrado em 2024. Naquele ano, quando foram acionadas, as comportas registraram vazamento, algo amenizado após uma manutenção nas estruturas.
– Não é uma manutenção fácil e nem barata, mas ela tem que ser feita. Na cheia que tivemos em setembro e novembro, teve água entrando pelo sistema de bueiros: tinha uma válvula que precisava ser fechada para evitar que o Guaíba entrasse por baixo e não funcionou. Aí, tivemos um período de seca e, pelo jeito, não se fez a manutenção também. Embora o Dmae esteja investindo, o sistema está mostrando que precisa ser muito atualizado – defende o professor da UFRGS.
Entre as melhorias, o acadêmico cita que as bombas precisam funcionar, é preciso construir uma estação de energia autônoma para esses sistemas e a manutenção das comportas deve ocorrer regularmente, porque elas precisam funcionar sozinhas, sem a necessidade de sacos de areia, conforme o especialista. O sistema de válvulas funcionar corretamente evita que a água inunde a cidade através dos bueiros, o que aconteceu agora em pontos de Porto Alegre como o Centro Histórico e o bairro Menino Deus, por exemplo.
Além do sistema de contenção de cheias, o monitoramento dessas situações também precisa receber investimento, na opinião de Meirelles: sistemas como o Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cem Áden), do governo federal, e a Sala de Situação, que reúne informações de áreas como meteorologia e hidrologia, carecem de manutenção, e sua robustez de dados foi diminuindo. Uma política estadual estruturada de gestão de desastres naturais também ajudaria a delinear quais são as responsabilidades de cada ente público e traçar o passo a passo sobre o que fazer em momentos de emergência. Um anteprojeto dessa política foi feito em 2015, mas a proposta de uma legislação a respeito nunca avançou.
A longo prazo, o principal desafio para evitar que as mudanças climáticas sigam se agravando é reduzir ao mínimo o uso de combustíveis fósseis, que geram em torno de dois terços dos gases de efeito estufa que geram o aquecimento global, adotando, no lugar, fontes de energia renovável, como a fotovoltaica, a eólica e a hídrica. Nesse quesito, o Brasil é destaque mundial: em torno de 50% de sua matriz energética é limpa, índice que salta para 93%, quando se fala em energia elétrica. China e EUA, por outro lado, são os maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo.
Na comparação com o período pré-industrial, a temperatura média global subiu quase 1,5ºC, número considerado limite para que não aconteçam catástrofes maiores. Segundo Odilon Duarte, coordenador do curso de Engenharia de Energias Renováveis da PUCRS, para evitar que o globo siga aquecendo, já não adianta “assustar” as pessoas: é preciso fazer “doer no bolso”.
– As pessoas parecem estar se acostumando a esse tipo de tragédia. Em reuniões com outras universidades latino-americanas e de países como EUA e Canadá, percebo que cresce a ideia de se criar uma espécie de imposto a ser pago por empresas que estão poluindo, a fim de mitigar essa questão das mudanças climáticas – pontua o docente.
Muito comuns no Rio Grande do Sul, as hidrelétricas também precisarão se adaptar ao “novo normal”, construindo vertedouros e extravasares maiores e barragens com uma capacidade maior, cita Duarte, explicando que, com as transformações no clima, todas as referências têm mudado, e, por esse motivo, toda a ciência envolvida em áreas como meteorologia, hidrologia e a própria engenharia também sofrem impacto.
– Se nós, por exemplo, tivermos um aumento de 1,5ºC de temperatura média global, os modelos matemáticos meteorológicos caem por terra. Ou seja: vamos ter que reestudar tudo e relampejar novamente, para buscar novos modelos nos quais a gente consiga com maior assertividade saber a previsão do tempo, o que é extremamente importante a curto, médio e longo prazo – defende o professor da PUCRS.
Como em muitos lugares do mundo, diversas cidades gaúchas se constituíram em volta de rios, que são abundantes no Estado – é neles que as populações encontraram seu ganha-pão, em atividades como agricultura, pecuária, indústria e comércio. Tão natural antigamente, o estabelecimento de moradias muito próximas à água, que pode subir, ou em morros, que podem sofrer deslizamentos, precisa ser repensado.
– Muitas vezes, as pessoas vão habitando determinadas áreas, desmatando, mudando a condição natural e vai se perdendo a barreira de contenção natural. Aí, quando acontece algum deslizamento, o solo encharca, fica mais pesado e a terra termina literalmente desmoronando. Por isso, esse tipo de situação precisa ser reavaliado – observa Duarte.
Vamos ter que reestudar tudo e replanejar novamente, para buscar novos modelos nos quais a gente consiga com maior assertividade saber a previsão do tempo, o que é extremamente importante a curto, médio e longo prazo.
ODILON DUARTE
Professor da PUCRS
Com isso, possivelmente, municípios inteiros precisariam ser esvaziados ou deslocados, o que não deve acontecer de um dia para o outro, mas precisa ser levado em conta: aqueles moradores já atingidos por enchentes, por exemplo, devem ser retirados do local, em vez de ter sua moradia reconstruído no mesmo lugar para, futuramente, perder tudo de novo, na opinião do docente da PUCRS.
Arquiteta urbanista, professora da UFRGS e copresidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Rio Grande do Sul (IAB-RS), Clarice Oliveira diz que antes das chuvas extremas que caíram no último ano já existia um plano de ação de gestão das águas para a bacia do Rio Taquari, por exemplo, região muito atingida por esses desastres naturais. Nesses estudos, são elaboradas estratégias de manejo para as bordas desses rios, ações de reflorestamento, entre outras formas de proteção natural, para que a água não chegue à cidade.
O problema é que esse plano nunca foi colocado em prática, e alguns municípios seguiram crescendo em pontos onde já é sabido que, com chuva, alaga.
– Pode existir a construção de cidades em costas de inundação? Pode, desde que exista um sistema de proteção, que não são simplesmente sistemas de engenharia e concreto. Pode ser, ou ter, de forma complementar, sistemas baseados na natureza. É um conjunto de ações que precisam ser pensadas de forma integrada – sintetiza Clarice.
Pode existir a construção de cidades em costas de inundação? Pode, desde que exista um sistema de proteção, que não são simplesmente sistemas de engenharia e concreto. Pode ser, ou ter, de forma complementar, sistemas baseados na natureza.
CLARICE OLIVEIRA
Professora da UFRGS
A arquiteta lembra, ainda, que muitas vezes quem vive em bordas de arroios e outros cursos d’água são populações mais carentes, que vivem em áreas com pouca infraestrutura urbana e sem drenagem. Isso faz com que essas pessoas sejam as primeiras atingidas pelos efeitos climáticos.
– A gente tem que pensar nas áreas centrais, longe das costas? Sim, com certeza. Estamos vendo, no Vale do Taquari, cidades inteiras sendo destruídas, e aí se pensa: vamos reconstruir as cidades em outros lugares. Mas não estamos nem conseguindo construir cidades equilibradas longe das áreas com risco de alagamento – observa a docente da UFRGS.
De Simoni, do ICS, ressalta que é fundamental repensar as cidades, mas que as respostas devem ser construídas junto às populações locais, a fim de evitar soluções simplistas como a remoção de pessoas que, muitas vezes, têm laços profundos com aquele território. Por outro lado, a copresidente do IAB-RS afirma que não se pode “pôr na conta” da população pobre a ocupação de lugares inadequados, e cita o bairro Arquipélago de Porto Alegre como um exemplo de região que também serve de moradia para pessoas de alta renda.
Doutoranda em Políticas Públicas na UFRGS, Júlia Lima entregou, na semana que passou, sua tese na qual busca identificar as políticas públicas entre 2015 e 2023 para o enfrentamento às mudanças climáticas ou desigualdades sociais nas três capitais da região Sul: Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre.
Na área ambiental, encontrou 47 políticas. Apesar do número relativamente alto, boa parte delas não contava com os dois elementos necessários no desenho de uma política pública – apresentação de seus objetivos e instrumentos – e nenhuma trabalhava um dos três principais pontos quando se fala em mudanças climáticas: a busca pela resiliência.
– O que a Agenda 2030 e todos os tratados internacionais têm dito é que se lance mão de pelo menos três estratégias: de mitigação da emissão de gases de efeito estufa, de adaptação a essa nova realidade e de resiliência, que promove a capacidade das populações de conseguirem sobreviver e manter o seu cotidiano, como a alimentação e o acesso à água potável, trabalhar, estudar, ter atendimento médico. Hoje, vivemos uma situação que deixa a nós e aos governantes totalmente paralisados, porque não temos políticas públicas que nos preparem para esse momento – pontua a doutoranda.
Essas estratégias precisam, ainda, levar em conta a desigualdade social. Por exemplo: alertas em redes sociais nem sempre chegam para, justamente, as pessoas mais afetadas, que nem sempre têm acesso constante à internet.