Por Abrão Slavutzky
Psicanalista e escritor
Nestes primeiros dias de maio de 2024, nosso Estado vive a maior tragédia da sua história. De diferentes formas se pode imaginar que os gaúchos estão chocados, tristonhos. Penso nos que morreram e nos familiares e amigos que de um momento para outro perderam seus entes queridos. Penso nas milhares e milhares de casas destruídas, onde décadas de trabalho desapareceram. Na TV vi uma das cenas mais impactantes desses dias: um homem mostrava o interior de uma casa de madeira, enquanto o repórter a iluminava. Mesa revirada, as camas cheias de barro, aliás, o barro estava por toda parte, até no sótão. Dizia o morador, a cada coisa que mostrava: “Deus do céu”. Repetiu a expressão muitas vezes, até disse estar se repetindo, mas estava chocado. O barro quase fez a casa sumir. Fiquei tempo assistindo e, por dentro, senti tristeza. O morador seguiu mostrando raízes de aipim arrancadas, árvores frutíferas destruídas, potes de mel para vender estragados. E repetia: “Deus do céu!”.
Há muitos mortos, muitas escolas e hospitais danificados. Nosso Estado está traumatizado, estamos abatidos. Entretanto, há uma quantidade de voluntários ajudando a população, e que estão fazendo um trabalho admirável. Gente simples que perdeu casas, roupas, camas, tudo o que tinha. Acompanho de perto o que fazem esses bravos voluntários através de um neto e de uma neta que estão trabalhando na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS. Narram todos os dias as mais variadas estórias: uma menina de uns quatro, cinco anos estava com a roupa do corpo molhada, e meu neto e ela procuravam outra de que ela gostasse. Nada servia. A menina estava tristonha. Até que uma roupa fez seus olhos brilharem. A menina riu, e o voluntário ajudou-a a se vestir. E foi uma festa, pois, no meio da tristeza, nasceu a alegria. Já minha neta estava com uma mãe e sua filha com menos de um ano, que não caminhava. A menina estendeu a mãozinha para a voluntária, que ajudou-a com ambas mãos e começaram a caminhar. A mãe disse que era a primeira vez que caminhava, e aí todo o grupo bateu palmas.
Há também um sem-número de cenas incríveis no Estado, como o cordão de voluntários em Canoas para puxar as embarcações com desabrigados; o engenheiro que se segurou em um galho em cima de seu carro durante 15 horas e foi salvo por quatro amigos. Foram essenciais os helicópteros com seus pilotos retirando centenas de pessoas dos telhados.
Rio Grande traumatizado. Mas o que é mesmo um trauma? “Trauma” é uma palavra usada na medicina e na cirurgia, em grego significa “ferida” e deriva da palavra “furar”. Já traumatismo são as consequências, no organismo, de lesões decorrentes de uma violência externa. Em psicanálise se construiu a expressão “trauma psíquico” (trauma na alma): choque violento, situação abrupta, com diferentes consequências em cada pessoa. Se bem o trauma psíquico, que é singular, pode ser pensado como trauma familiar, trauma de um Estado, de um país. O trauma psíquico revela, de forma simultânea, tanto um perigo externo de onde vem o ataque como um perigo interno, pois o eu é atacado não só de fora, mas também de dentro. Ataques que são derivados das excitações pulsionais, pois cada um reage de acordo com sua realidade psíquica. O ano de 2024 nunca será esquecido, é um ano traumático.
No nosso Rio Grande estão predominando as ações positivas por parte dos estudantes e jovens em geral. São os voluntários. Muitos dos que recebem ajuda vêm chamando os voluntários de anjos e, na verdade, são mesmo anjos, é gente que faz o papel de anjo protetor. Já nas redes sociais, além de se destacar esse Rio Grande heroico, há muitas críticas aos poderes silenciosos. Nem sempre as redes sociais expressam a verdade, quem sabe ocorrem coisas que não estão sendo divulgadas.
Uma coisa é certa: vai ser necessário muito tempo para se arrumarem as estradas, construírem as pontes, casas, escolas e as instituições sociais. Creio que foi um erro, no passado, quando parte da mídia propagou que o Estado teria que ser mínimo. Reduziram o Estado e prejudicaram o povo, pois diante da tragédia se requer um Estado mais ágil, que trabalhe seriamente na prevenção. Diante da chuvarada, o que veio fazendo o poder público nesses anos todos? Infelizmente, desprezaram a importância do Instituto de Pesquisas Hídricas (IPH) da UFRGS. Aliás, só há dias escutei sobre o IPH – você sabia que ele existia?
Precisamos aprender também a solidariedade com a nova geração, os voluntários do Rio Grande.