Quando a Brigada Militar assumiu a administração e a guarda interna do Presídio Central (1995), o cenário na casa prisional era de motins, fugas e episódios de violência. Foi justamente o elevado número de fugas entre os anos de 1994 e 1995 que levou o então governador Antônio Britto a determinar a intervenção que inicialmente duraria apenas seis meses, mas que se prolongou por 28 anos. GZH relembra alguns episódios da história do Central envolvendo motins, fugas, mortes e o surgimento das facções.
Melara no Plaza São Rafael
Em 8 de julho de 1994, criminosos, apontados como entre os mais perigosos do Estado naquele período, integrantes da Falange Gaúcha (primeira facção do Estado), deram sequência a um motim iniciado na véspera, no Hospital Penitenciário, em prédio anexo ao Presídio Central. Os presos tinham na mira de armas 24 reféns.
Os presidiários exigiram que outros dois presos do mesmo grupo fossem removidos da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) até o Central. O pedido acabou atendido. Foi assim que Dilonei Francisco Melara, naquele momento apontado como maior líder dentro do sistema penitenciário do RS, e seu braço-direito, Celestino Linn, juntaram-se aos amotinados.
À noite, após mais de um dia de negociação, os 10 presos foram liberados a deixar a prisão. Foram cedido três Gols, dentro dos quais foram transportados os presidiários e nove reféns. Logo depois que os bandidos deixaram a cadeia, iniciou-se uma perseguição policial, que tomou as ruas de Porto Alegre. A caçada culminou em tiroteios, acidentes, e na morte de um policial civil e quatro presos.
O carro no qual estavam Melara, Linn, Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, e Carlos Jefferson dos Santos, o Bicudo, com duas estagiárias de Psicologia e o diretor do Hospital Penitenciário, Claudinei Carlos dos Santos, sofreu uma pane no bairro Petrópolis. Um policial tentou se aproximar, foi baleado e morto.
Na sequência, a fuga seguiu até os bandidos invadirem o saguão do Plaza São Rafael, hotel no centro da cidade, a bordo de um táxi. No veículo, estavam Melara, Linn e Fernando Rodolfo Dias, o Fernandinho, com três reféns. Dentro do hotel, psiquiatras participavam de um congresso. Ferido na colisão, Linn foi dominado pelos policiais e um dos reféns liberado.
Melara e Fernandinho ainda resistiram, mantendo os outros reféns. Passaram-se mais de 15 horas de negociação, com auxílio da BM, até que a dupla decidisse se entregar. Linn morreu no dia seguinte, no Hospital Penitenciário.
Maior fuga da história
Em 1995, durante o Carnaval, numa segunda-feira, dia 27 de fevereiro, foi registrada a maior fuga em massa já ocorrida no Estado. Ao todo, 45 detentos escaparam correndo. Para chegar às ruas, quebraram uma parede para alcançar um muro e usaram as chamadas jiboias (cinco cordas feitas com lençóis e cobertores) para descer de uma altura de quatro metros. Os presos foram caçados por policiais militares nas ruas de Porto Alegre. Vinte e três deles foram capturados no mesmo dia e o restante nas semanas seguintes.
Em 25 de julho daquele ano, após um novo motim com 21 presos feridos, o secretário estadual da Justiça e da Segurança Pública do governo de Antônio Britto, José Fernando Eichenberg, convocou a BM para substituir os agentes penitenciários. A medida não foi adotada somente no Central, e se estendeu a outras cadeias do Estado, como a Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), a Penitenciária Estadual de Charqueadas (PEC), e a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc).
As farras do pó
Dois episódios, em 2014 e 2018, ficaram conhecidos como farra do pó e escancararam para a sociedade o fato de que drogas entravam e eram consumidas livremente no presídio.
Em 2018, o fato tornou-se público por meio de vídeo no qual 40 homens acotovelados em um corredor aguardavam para cheirar carreiras de cocaína. A divulgação fez com que a BM abrisse procedimento de investigação para apurar como ocorria o abastecimento para a festa dos presos de uma facção criminosa do Vale do Sinos.
As imagens exibiam espaço de uma galeria e uma mesa quadrada com pelo menos 120 carreiras distribuídas em seis fileiras para o consumo dos detentos. Além da festança, celulares estavam em posse dos presos, resultando em vídeo que chegou às mãos do comando da BM
Em 2014, outro vídeo com farra do pó havia sido gravado.
— Nesta ocasião, era a festa de despedida de um líder de fação, que coincidiu com a véspera de Natal. Só que desta vez, quem vazou as imagens foi a companheira de um dos presos, que tinha sido traída quando estava grávida e descobriu que outra mulher havia sido inscrita para visitas íntimas. Ela entregou as imagens como vingança pela traição — lembra o jornalista Renato Dornelles, ex-repórter da Zero Hora e do Diário Gaúcho.
Expulsão por estupro de apenada travesti
Em 2017, a atuação da Brigada Militar foi envolvida em denúncia sobre um suposto caso de abuso sexual cometido por dois de seus integrantes dentro do Presídio Central. O caso envolveu uma detenta de 30 anos, que alegou ter sido violentado por soldados da corporação.
De acordo com o relato da detenta, uma travesti, o caso ocorreu em um banheiro do presídio para onde o preso teria sido levado por dois PMs. Os policiais retiraram o preso da terceira galeria do pavilhão H, ala reservada a presos homossexuais, supostamente para que ela assinasse um documento.
Conforme narrou a detenta em registro na 11ª Delegacia da Polícia Civil da Capital (11ª DP), ela foi obrigada a fazer sexo com um dos PMs e foi ameaçada de morte caso revelasse o ocorrido. Levado de volta para a galeria, a presa contou o fato a outros apenados, e se estabeleceu uma confusão, até a chegada de supervisores da BM de plantão.
Conduzida no dia seguinte até a 11ª DP, a detenta entregou um preservativo que conteria resíduos de esperma do PM que o violentou, argumentando ser prova do crime. Da Polícia Civil, a investigação passou para a Brigada Militar, pois é considerado crime militar.
A travesti estava detida desde a prisão em flagrante ocorrida após matar a facadas um taxista de 70 anos em uma área rural de Carazinho.
Em 2019, três policiais militares foram expulsos da corporação. Dois pela agressão e um terceiro por ter acobertado o crime.
Nascedouro de facções
A liderança de Dilonei Francisco Melara é reconhecida por ter sido sustentada em uma postura de adversidade hostil contra o Estado e as autoridades. Este estilo era uma marca de sua trajetória e funcionava como artifício para convencer outros apenados a segui-lo na organização denominada Falange Gaúcha.
Para enfrentar tal liderança entre as relações estabelecidas pelo convívio nos corredores do Central, a Brigada Militar teria lançado mão de uma estratégia pouco ortodoxa, recorda o jornalista Renato Dorneles.
— Determinaram a outro preso bastante respeitado, que atendia pelo apelido de Brasa, que escolhesse um grupo de apenados de sua confiança e tentasse empregar compromissos de organização e higiene dos espaços, combatendo as regras de desordem permanente do Melara — conta.
O agrupamento, que teve êxito em sua atribuição, ficou conhecido como "Os Brasas", e a Falange Gaúcha, de Melara, transformou-se na facção "Os Manos", que travaram guerra, a qual resultou em confrontos e morte dentro da cadeia.
Por anos, a polarização prevaleceu, até que um terceiro grupo foi criado entre os presos que não desejavam integrar nenhuma das duas forças existente.
— Surgiu o grupo que ficou conhecido como "Os Abertos", originado na ideia de abrir, separar-se dos dois grupos que rivalizavam pelo comando das galerias. Até hoje, os três agrupamentos representam forças atrás das grades de presídios gaúchos e são os nomes de reconhecidas organizações criminosas que agem no Estado — conclui Dorneles.