O Ministério Público vai recorrer da decisão que inocentou os três policiais militares acusados de ocultar o corpo de Gabriel Marques Cavalheiro, de 18 anos, em São Gabriel, na Fronteira Oeste. O jovem foi encontrado morto em 12 de agosto do ano passado, depois de desaparecer após abordagem da Brigada Militar (BM).
Somente um soldado, Cléber Renato Ramos de Lima, foi condenado a um ano de reclusão por falsidade ideológica. Já o soldado Raul Veras Pedroso e o segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen, também julgados, foram absolvidos. Os três ainda serão julgados pelo homicídio na Justiça Comum. A sentença foi proferida na madrugada desta sexta-feira (21) após julgamento no Tribunal de Justiça Militar.
Os três policiais eram acusados de terem registrado informação falsa no boletim de ocorrência após abordarem Gabriel. No documento, declararam que “a guarnição abordou o Sr. Gabriel, que consultado estava sem novidades, sendo então orientado e liberado”, mas a investigação apontou que o jovem foi agredido, algemado, preso e colocado na viatura.
A Justiça Militar entendeu, no entanto, que a falsidade ideológica foi cometida somente pelo soldado. Responsável por redigir o boletim de atendimento após a abordagem, Lima disse no interrogatório que não julgou necessário informar o local onde Gabriel foi deixado e sustentou que a vítima foi levada até a localidade de Lava Pé porque pediu. Questionado se faria algo diferente caso preenchesse o mesmo boletim de atendimento hoje, Lima disse que “talvez” acrescentasse que Gabriel havia sido conduzido e algemado.
A juíza Viviane de Freitas Pereira votou pela condenação do soldado Lima pelo crime da falsidade ideológica, justificando que ele era o servidor responsável por inserir os dados do boletim. Por outro lado, votou pela absolvição dos demais réus por não serem eles, de fato, os operadores do boletim. Sobre a ocultação de cadáver, a magistrada votou pela absolvição dos réus e afirmou que não havia elementos que sustentassem que os policiais ocultaram o corpo de Gabriel.
Na conclusão da juíza, mesmo os elementos juntados ao processo, como imagens de câmeras em locais de acesso à barragem, as quebras de sigilos telefônicos dos policiais, os depoimentos e os dados de GPS das viaturas “não evidenciam que os referidos réus concorreram para o crime de ocultação do cadáver do jovem”. Os quatro oficiais integrantes do Conselho Permanente acompanharam a magistrada nos votos.
A defesa e acusação têm prazo de até cinco dias para manifestar a intenção de recurso e outros 10 dias para apresentar as razões do recurso. Ainda na madrugada, após o resultado, o promotor de Justiça Luiz Eduardo de Oliveira Azevedo declarou que pretende recorrer. Na manhã desta sexta-feira (21), o promotor voltou a falar sobre o resultado, ressaltou que respeita a decisão da Justiça Militar, mas confirmou que ingressará com recurso.
— Não há donos da verdade. Mas fomos cheios de esperanças, entendendo que seriam condenados, por uma razão simples: a meu juízo, a prova é de uma clareza. Tenho todo respeito pela magistrada e assimilo sem problemas o resultado. Só que muitas vezes o Judiciário quer uma prova que é impossível. O crime é ocultação de cadáver. Se vai ocultar, não vai fazer isso publicamente. Nós vamos recorrer — sustenta o promotor.
Ao contrário do entendimento da Justiça Militar, Azevedo acredita que há provas suficientes de que os PMs ocultaram o corpo de Gabriel:
— Eles pegaram o menino, tem prova, imagens, deram uma pancada no guri, tem prova e testemunha, colocaram na água, no açude, tem prova de que não tinha uma gota de água nos pulmões. Os policiais mentiram, colocaram na ocorrência que tinham dispensado após a abordagem. Depois têm ligações entre eles, obtidas com a quebra de sigilo, tem a perícia mostrando que ele foi morto com uma pancada. Como eles colocaram, quando foi? É preciso somar um mais um. Respeitosamente, não concordamos, vamos entrar com recurso, levantando todas essas situações para procurar reverter a decisão.
Sobre a falsidade ideológica, Azevedo diz que o MP também entende que os três PMs tiveram participação no delito. O promotor ponderou que o fato de os crimes de homicídio e ocultação terem sido julgados separados — o assassinato tramita na Justiça Comum — pode ter tido algum reflexo no desfecho. Por outro lado, acredita que o resultado desse julgamento não afetará o processo sobre o homicídio.
As defesas
— A defesa fica satisfeita com o resultado, mas, ao mesmo tempo, triste porque o real assassino desse menino Gabriel está solto. Não são esses homens que cometeram o homicídio — afirmou.
Para a defesa do segundo-sargento Jacobsen, representada pelo advogado Maurício Custódio, o conselho cumpriu a expectativa que tinha de que se acolhesse a prova técnica, examinasse os elementos e isolasse suposições.
— A defesa sempre se bateu nessas provas técnicas. Sempre se bateu na inocência dos três acusados. Acreditamos que o diagnóstico fica evidente porque a prova sempre apontou a inocência — destacou.
Possível expulsão
O promotor lembrou ainda que há outro processo em andamento, que independe do resultado do andamento na Justiça Militar e Comum, que é o procedimento administrativo, que pode resultar na expulsão dos PMs.
— A BM é uma instituição muito séria, não confundam mal brigadianos com a Brigada Militar. Estão toda hora dando a vida por nós. A BM possui essa ferramenta, e a responsabilidade administrativa é completamente aparte da criminal. A lógica determina que um policial que falsifica um boletim de atendimento não tem condições de permanecer na corporação — argumenta Azevedo.
Segundo a Corregedoria-Geral da Brigada Militar, o processo administrativo segue em andamento e a expectativa é de que o resultado seja conhecido em 10 dias.
Indignação da família
A família de Gabriel deixou o Tribunal de Justiça Militar (TJMRS), em Porto Alegre, onde ocorreu o julgamento, assim que o terceiro membro do conselho proferiu o voto. Ao todo, cinco votaram. O pai do jovem, Anderson da Silva Cavalheiro, mostrou-se indignado com o resultado:
— A única coisa que eu tenho para falar é que é Brigada julgando Brigada. Isso vai dar sempre o mesmo resultado. É isso que tenho para dizer, a injustiça sempre vai ser feita dessa forma.
— Agora tu podes abordar um menino, bater, que com a Brigada não acontece nada. Passa uma esponja e está tudo limpo — completou a mãe, Rosane Machado Marques.
Ela ressaltou também que, independentemente do resultado desta sexta-feira, seu filho não voltará:
— Mesmo com eles ganhando hoje, eu saio sem o Gabriel. Mesmo ele ganhando, eu perdi o Gabriel. Ganhando ou perdendo, a família já perdeu. Então não importa. No final das contas, Deus está vendo lá em cima e eles vão ser condenados.
O homicídio
Os três PMs respondem na Justiça Comum a outro processo, em que são réus por homicídio triplamente qualificado. É por causa desta acusação que o trio está preso, desde 19 de agosto de 2022, no Presídio Policial Militar, em Porto Alegre. De acordo com os representantes das defesas dos acusados, as prisões serão mantidas por não terem ligação com julgamento na Justiça Militar.
O processo relacionado ao homicídio está em fase de instrução, sem data para julgamento. Segundo o Tribunal de Justiça do Estado, o processo aguarda a realização de "diligências para, futuramente, designar a próxima audiência". "A sentença sobre a pronúncia ou não dos réus será realizada apenas após a finalização de todas as diligências (e finalização) das audiências e apresentação de memoriais autorais e defensivos", afirma o TJ.