Em 31 de outubro deste ano, completou duas décadas de um caso que estarreceu o Brasil. Em 2002, o casal Richthofen foi encontrado morto dentro da mansão onde morava na zona sul de São Paulo. Mais tarde, descobriu-se que a filha, Suzane, o namorado dela e um irmão dele tinham arquitetado e colocado em prática os assassinatos brutais. No Rio Grande do Sul, um crime semelhante chegou ao Tribunal do Júri nesta semana.
Em setembro de 2020, Paulo Adão Almada Moraes, 50 anos, e a esposa Manoela Renata Araújo Chagas, 40, foram executados a tiros dentro de casa, em Jaguarão, no sul do RS. Assim como o casal Richthofen, os dois foram surpreendidos pelos assassinos enquanto dormiam. O filho, Iuri Paulo Chagas Moraes, a namorada, Bruna Melissa Alves Betancourt, e um amigo deles Roger Pinto Nunes foram condenados nessa terça-feira (22). Juntos, somam um total de 158 anos de prisão. Os três negaram ter cometido o crime.
Da mesma forma que no crime da capital paulista, o caso de Jaguarão chegou à polícia com suspeita de latrocínio. O filho narrava que assaltantes tinham invadido a moradia e os pais tinham sido mortos durante o roubo. Uma caminhonete da família, que estava na garagem, havia sido levada e foi encontrada logo depois no outro lado da cidade. Iuri, assim como Suzane, foi ao velório dos pais, onde abraçou familiares e repetiu a mesma versão, de que alguém havia invadido a moradia.
Em ambos os casos, as contradições nos depoimentos e fatos mal explicados levaram a polícia a suspeitar que se tratava de um duplo homicídio. Durante o júri, que se iniciou às 9h da última segunda-feira (21), a delegada Juliana Garrastazu Ribeiro, responsável pela investigação, narrou como os investigadores passaram a suspeitar do trio. No relato de Iuri à polícia, um dos pontos que despertou a atenção é que ele afirmou ter se escondido no quarto da irmã mais nova após ouvir os disparos, mas em nenhum momento foi ao quarto dos pais saber como eles estavam.
Assim como Suzane, que tinha um irmão de 15 anos, Iuri tinha uma irmã adolescente, de 13. A menina, inclusive, acompanhou parte do julgamento, assim como outros familiares das vítimas, dos réus e pessoas da comunidade. A sessão lotou o plenário, algo pouco comum no município. Além da delegada, foram ouvidas duas testemunhas de defesa, uma delas a avó de Iuri, mãe de Manoela, que disse não acreditar que o neto fosse capaz de cometer o crime, e uma pela defesa de Bruna.
Diferentemente do caso Richthofen, no qual os pais de Suzane não aceitavam o namoro da filha, Bruna aparentava ter boa relação com Paulo Adão e Manoela, chegando a conviver na moradia do casal. Antes de ser presa, a jovem fez um post nas redes sociais, lamentando a perda. "Com dor no peito eu digo o quanto vocês farão falta na vida de tantas pessoas e certamente na minha, sempre alegres, dispostos, sorridentes”, escreveu.
Trio nega crime
No julgamento, Bruna manteve a versão de que não se envolveu nas mortes, e apontou o namorado como o responsável. Outra semelhança com o caso Richthofen, no qual o namorado de Suzane culpou a jovem por ter planejado o crime, embora ele, diferentemente de Bruna, tenha admitido que cometeu os assassinatos. Quando interrogado, Iuri reconheceu que tinha conflitos com os pais e picos de raiva, mas disse que não é responsável pelo crime.
Já Roger confirmou que foi o responsável por levar o veículo do casal da residência, mas alegou que não sabia que isso fazia parte de um plano de duplo homicídio. Alegou que se surpreendeu quando Bruna lhe entregou, além das chaves da caminhonete, uma arma. O revólver de calibre 22 chegou a ser arremessado por ele num rio mas, mais tarde, foi recuperado por mergulhadores dos bombeiros.
Essa mesma arma teria sido adquirida por Iuri dias antes do crime, entregando como pagamento dois celulares e uma televisão. Em casa, o jovem teria dito aos pais que havia sido assaltado. Manoela então entregou ao filho outro telefone. Tudo isso, segundo a acusação, fazia parte do plano para assassinar os pais.
Não aceitava controle, diz MP
A versão sustentada pelo Ministério Público foi essa, de que o jovem planejou o crime e se preparou para isso. O promotor Pedro Santos Fernandes iniciou a acusação lembrando o caso Richthofen.
— Foi um dos casos mais brutais do Brasil. E, infelizmente, pode-se dizer que se repetiu aqui. O caso de Jaguarão é muito similar. Os dois foram mortos na cama. O filho se afasta e outros dois cometem o crime — disse.
Fernandes ressaltou ainda que Iuri não teria demonstrado arrependimento pelo crime e afirmou que ele teria tentado forjar choro durante o interrogatório.
— Mas não caiu uma lágrima. Foi tudo planejado com muita antecedência — afirmou o promotor, que pediu a condenação dos três pelo duplo homicídio, duplamente qualificado, por motivo torpe e recurso que dificultou a defesa das vítimas.
No entendimento da acusação, na madrugada do crime, Iuri abriu o portão para o amigo ingressar na casa. Roger e Bruna teriam ido até o quarto das vítimas, que estavam dormindo. A jovem, segundo o MP, disparou contra os dois. Paulo Adão teria sido o primeiro a ser atingido com um tiro no olho, para evitar que reagisse em defesa da esposa. Logo depois, Bruna teria atirado na testa de Manoela.
— Ele (Iuri) pretendia ficar com os bens (da família) e ter liberdade. A defesa dele tentou sugerir que ele era agredido pelos pais, fazendo comparação com o caso Bernardo e outros similares. Mas isso não ficou comprovado. Pelo contrário, testemunhas dizem que era bem tratado e que única briga que tinham era que porque o Iuri, assim como Roger, usava muita droga. Os pais não aceitavam e ele não queria ser controlado — disse o promotor.
Logo depois, os advogados de defesa dividiram as duas horas e meia para apresentar argumentos. De maneira geral, questionaram o inquérito, alegaram que os clientes não cometeram o crime e que não havia provas de que o caso aconteceu conforme sustenta a acusação.
Sobre os argumentos apresentados no júri, a defesa de Iuri afirma que “a tese da acusação ficou apenas no campo da suposição”. Em nota, a banca de advogados afirmou que, em seu entendimento, “nenhuma prova concreta foi trazida quanto ao suposto planejamento arquitetado por Iuri” e que o cliente não afirmou ter pensado em matar o pais, e sim que “tinha picos de raiva por sofrer agressões e conviver em um ambiente de muito briga, momento em que falava coisas erradas”.
Na mesma nota, a defesa afirma que “diferente do que alega o Ministério Público, salienta que as agressões sofridas pelo rapaz foram comprovadas através do depoimento de sua avó, mãe da vítima Manoela, que afirmou ainda que ele era um neto amoroso e não acredita que ele seria capaz de fazer o que lhe acusam”. Por fim, a defesa rechaçou o argumento de que Iuri não demonstrou arrependimento, afirmando que ele “nega as acusações, e portanto não é possível impor arrependimento por algo que não fez. Ao contrário do que foi dito, Iuri estava nitidamente abatido, chorou muito durante toda a fala de seus defensores no momento dos debates, e também ao ouvir o testemunho de sua avó”, finaliza o texto.
Sentença
Os jurados, cinco mulheres e dois homens, reuniram-se na sala secreta por volta da meia-noite. Pelas 4h, o juiz Frederico de Lemos Carneiro Monteiro leu a sentença, na qual os três réus, que estavam presos, foram condenados pelos crimes. O magistrado considerou a culpabilidade "estarrecedora".
"O crime perpetrado pelo réu, com devido auxílio de sua então namorada e de seu amigo, é digno de entrar para a história da crônica policial brasileira. Os atos levados a cabo por Iuri contrariam em muito os instintos mais básicos inerentes ao ser humano", escreveu o juiz.
Apesar das semelhanças com o caso Richthofen, uma diferença marca os crimes: a pena aplicada pelo juiz de Jaguarão foi bem mais severa. Em São Paulo, a filha, Suzane, e o namorado Daniel Cravinhos foram condenados a 39 anos de reclusão, enquanto o irmão dele, Cristian, recebeu 38 anos. Já no caso no sul do RS Iuri foi sentenciado a 58 anos de reclusão pelo assassinato dos pais, Bruna foi condenada a 54 anos de prisão e Roger a 46 anos.
— O resultado é extremamente positivo. São penas consideráveis para um crime que foge totalmente do padrão — considerou o promotor.
Já as defesas devem recorrer da decisão, tanto pelas condenações, quanto pelo tempo das penas aplicadas.
Contraponto
O que diz a defesa de Iuri
Os advogados Filipe Trelles, Marcela Weiler, Isabela Camerini, Hiago Ferreira Mendes e Mariana Beduhn se manifestaram por nota, informando que respeitam a decisão do júri, mas que recorrerão da sentença. Confira:
“A defesa de Iuri respeita a decisão dos jurados, mas não concorda com o veredito final. O conselho de sentença julga com a sua íntima convicção, mas com base nas provas que existem no processo, não há como não recorrer. A condenação é manifestamente contrária à prova dos autos, não existe qualquer comprovação de que Iuri tenha mandado ou ordenado a morte dos pais. No mais, a pena imposta extrapola os limites legais, o que também será objeto da apelação.”
O que diz a defesa de Roger
A defesa informou por nota que irá recorrer da decisão e entende que a sentença extrapolou os limites. Confira:
"A defesa do corréu Roger Pinto Nunes, composta pelos advogados Bruno Vasconcellos, Matheus Monteiro, Pedro Lucena e André Monteiro, do escritório MLV Advocacia, em parceria com a advogada Luiza Amaral, recorrerá do julgamento por entender que, durante a sessão em plenário, a acusação cometeu ilegalidades que acarretaram na nulidade do julgamento, as quais foram devidamente consignadas perante o Juiz Presidente, em ata. Também entende a defesa que a pena aplicada para o caso extrapolou seus limites, sendo fixada muito acima do que as características pessoais de Roger, bem como as próprias circunstâncias do caso, indicavam em termos de proporcionalidade. Por essas razões, o processo deverá ser submetido à análise do Tribunal de Justiça para que sejam enfrentados os pontos abordados pela defesa."
O que diz a defesa de Bruna
GZH tenta contato com os advogados Carlos Eduardo Nascente Chagas e Rodrigo Lima da Silva. Durante o julgamento, ela negou ter cometido o crime.