Existe um mistério que não foi esclarecido pelo Inquérito Policial Militar (IPM) que responsabilizou três PMs pelo assassinato de Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, ocorrido em São Gabriel em 13 de agosto: como o corpo do jovem foi parar dentro de um açude?
A reportagem teve acesso ao conteúdo integral do IPM e ele não responde essa questão, embora aponte indícios de que os policiais mentiram, combinaram versões e, sobretudo, espancaram o jovem (o que é negado por eles). Tudo isso somado levou ao indiciamento dos PMs por homicídio e à prisão preventiva deles, decretada pela Justiça. Eles estão no Presídio Militar de Porto Alegre.
Gabriel sumiu naquela madrugada, logo após ser detido por uma guarnição da BM, chamada porque ele tentava ingressar numa residência, embriagado. Testemunhas viram quando ele foi espancado, algemado e levado numa viatura. O jovem estava em São Gabriel para se incorporar ao Exército.
Interrogados, os PMs (soldados Cléber Renato Ramos de Lima, Raul Veras Pedroso e sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen) declararam ter libertado o jovem logo após a detenção. Mas o IPM, feito a mando da Corregedoria da Brigada, flagrou várias contradições que permitiram enquadrar os policiais pelo crime de homicídio quatro vezes qualificado.
Um dos principais indícios é a afirmação de que teriam dado carona a Gabriel para ir a uma casa de familiares. Na realidade, o registro do GPS da viatura mostra que os policiais foram até perto de um açude, justamente o local onde o corpo do rapaz foi encontrado, uma semana após seu desaparecimento.
"A guarnição afirma que abordou o senhor Gabriel, sendo este orientado e liberado, mas as provas e seus próprios depoimentos dão conta de os suspeitos deixaram Gabriel na região de Lava Pés (onde fica o açude)", ressalta o inquérito.
Os PMs também negaram qualquer agressão ao jovem, mas depoimentos de testemunhas dão conta de que Gabriel foi esbofeteado pelos policiais e levou três golpes de cassetete nas costas. Uma das bordoadas, conforme perícia, atingiu vasos na coluna e provocou hemorragia interna, apontada como causa da morte do rapaz. Mas foram os três PMs que jogaram o rapaz no açude?
O IPM traz conversas de WhatsApp travadas entre os policiais. Parte delas foi apagada pelos participantes, mas recuperada pelo Núcleo de Inteligência do Ministério Público.
Pelos diálogos recuperados, os investigados demonstram certa surpresa com a notícia de que foi encontrado um corpo. Pedroso diz acreditar que Gabriel "não está em 30" (código policial para óbito), enquanto De Lima fala que não sabe e reforça: "Só se saiu e morreu de frio. Ou se atirou no açude ali perto".
Em outra conversa, os PMs comentam que estavam com roupas limpas e isso prova que não o jogaram na barragem:
"Ainda bem que descemos no quartel, as farda tudo seca. Tem de pedir pros guris as filmagem", diz o soldado Pedroso.
Outro diálogo, porém, é considerado comprometedor pela Corregedoria da BM que investigou o caso. É quando Pedroso informa ao sargento Jacobsen que foi encontrada jaqueta de Gabriel e o sargento pergunta se foi perto da barragem.
"Tal afirmativa demonstra que ambos sabiam onde o corpo de Gabriel estava, ou seja, na barragem", interpreta o IPM.
Apesar de considerar as conversas "fortes indícios" de que o corpo de Gabriel foi jogado no açude, o inquérito admite que não é possível individualizar as condutas dos PMs sobre a ocultação do cadáver. A investigação considera comprovado, contudo, que os PMs mentiram sobre a carona e ocultaram o espancamento, que se comprovou fatal.
Há uma suspeita de que outros policiais possam ter ocultado o cadáver de Gabriel. O IPM relata que outras patrulhas estiveram nos arredores do açude na madrugada do sumiço do jovem. Isso foi comprovado por monitoramento de GPS, que mostrou encontro de viaturas naquela madrugada (a que levou Gabriel e outras). Inclusive o integrante de uma dessas guarnições conversou por WhatsApp, via ligação de voz, com o sargento Jacobsen, por volta das 4h (duas horas após eles terem deixado o jovem perto do açude). Não se sabe o que falaram.
A Polícia Civil, que conclui nesta quinta-feira (1º) o seu inquérito a respeito do crime, também admitiu nesta semana que permaneciam dúvidas sobre como o corpo de Gabriel foi jogado no açude.
Combinação de versões
É o somatório de indícios que fez os PMs serem indiciados por vários crimes. Um deles é a combinação de versões. O inquérito recupera diálogos no qual o soldado Pedroso diz aos companheiros: "Temos que ligar para advogada...Temos que se mexer...Precisamos jogar juntos agora".
O sargento Jacobsen concorda: "Não fizemos nada, a não ser dar uma 44 (carona) para tirar o cara do local da ocorrência. Como dissemos no depoimento. E fomos trabalhar o resto da madrugada".
Outro indício de manipulação de versões é que as mensagens no aplicativo WhatsApp foram apagadas.
Por tudo isso, o IPM considera que houve dolo eventual no homicídio do rapaz. Ou seja, que os PMs "não tiveram a intenção de atingir o resultado (morte de Gabriel), porém conheciam tais riscos e, mesmo assim, optaram por assumi-los, deixando a vítima no local, gravemente lesionada e em estado de embriaguez, portanto, sem condições sensoriais adequadas para se defender dos riscos decorrentes do abandono".
Contrapontos
O que diz a defesa do sargento Jacobsen:
O advogado Ivandro Bittencourt, que defende o sargento, afirmou que o cliente é inocente e que só foi atrás das imagens porque pediram. Ele também disse que não perguntou ao cliente o motivo de ele ter apagado as mensagens.
O que diz a advogada dos soldados Cléber Renato Ramos de Lima e Raul Veras Pedroso:
Ela não atendeu às ligações da reportagem. Nos últimos dias, tem reforçado a inocência dos seus clientes.