O caso de Gabriel Marques Cavalheiro, 18 anos, encontrado morto dentro de um açude em São Gabriel, na Fronteira Oeste, suscitou o debate sobre a violência policial. Três policiais militares foram presos após a confirmação da morte do jovem, que desapareceu após abordagem da Brigada Militar. Na segunda-feira (29), perícia confirmou que ele já estava sem vida quando teve o corpo arremessado nas águas.
Segundo a Defensoria Pública do Estado, até julho deste ano foram recebidos 246 relatos de violência durante abordagens policiais. Em sete meses, o número superou os registros de todo ano passado, quando foram 203. Dirigente do Núcleo de Defesa em Direitos Humanos, a defensora pública Aline Palermo Guimarães ressalta a importância de formalizar as denúncias, tanto para que cheguem ao conhecimento dos órgãos que podem tomar medidas como para traçar diagnóstico da violência policial no Estado e buscar a redução.
A defensora acredita que, entre os fatores por trás do crescimento dos relatos de violência policial, estão a retomada das audiências de custódia (afetadas pela pandemia) e a maior procura das pessoas para formalizar denúncias.
— Em muitos casos, percebemos o receio de eventual represália, mas estimulamos a formalização de denúncias para que os casos de atuação abusiva cheguem ao conhecimento dos órgãos e sejam apurados. Porém, infelizmente, nem todas as pessoas conseguem indicar elementos probatórios que possam corroborar o seu relato, o que dificulta a efetiva responsabilização dos envolvidos — afirma a defensora.
Em muitos casos, percebemos o receio de eventual represália, mas estimulamos a formalização de denúncias para que os casos de atuação abusiva cheguem ao conhecimento dos órgãos e sejam apurados.
ALINE PALERMO GUIMARÃES
Defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa em Direitos Humanos
A maior parte dos casos, segundo a Defensoria, envolve a Brigada Militar, mas há alguns que citam a Polícia Civil e guardas municipais. Na análise da defensora, um dos fatores que contribui para que a maioria dos casos esteja relacionada aos policiais militares é a natureza da função, já que a BM é responsável pelo policiamento ostensivo, em contato diário e direto com a população. Os relatos, em sua maioria, são de violência física durante abordagens, como agressões, sufocamentos, choques e uso de gás de pimenta. Há também registros de possíveis violências verbais e psicológicas.
Corregedoria da BM aponta queda
Corregedor-geral da Brigada Militar, Vladimir Luís Silva da Rosa aponta para cenário diferente do apresentado pela Defensoria, com queda das notificações recebidas especialmente por meio do 181. Segundo o coronel, em 2022, até o momento, foram 83 notificações de suspeita de abuso de autoridade ou lesão corporal — em todo ano passado, foram 180, em 2020, 184, e 2019 teve 185.
— Teríamos que ter uma situação muito fora da realidade para que 2022 venha a ter mais casos do que em 2019, quando havia circulação semelhante de pessoas nas ruas. Numa análise bem prática, os números indicam que teremos um 2022 com menos denúncias de abuso de autoridade e de lesão corporal — diz.
Não podemos afirmar que a BM é violenta. A BM em si, somos 18 mil. Se afirmamos isso, estamos colocando desde o comandante-geral até o soldado mais moderno na mesma situação de pessoas que porventura estejam praticando uma conduta desviante.
VLADIMIR LUÍS SILVA DA ROSA
Corregedor-geral da Brigada Militar
O corregedor enfatizou ainda que a BM realiza 15 mil abordagens por dia, o que representa 5,4 milhões de abordagens por ano e 19,1 milhões desde 2019. Embora reconheça a gravidade dos casos que despertaram atenção neste ano, considera que o quantitativo de ocorrências é "infinitamente menor" do que a prestação dos serviços da BM.
— Não podemos afirmar que a BM é violenta. A BM em si, somos 18 mil. Se afirmamos isso, estamos colocando desde o comandante-geral até o soldado mais moderno na mesma situação de pessoas que porventura estejam praticando uma conduta desviante. Nossa orientação é para que as pessoas sempre denunciem. Seja pelo 181, que é o canal de denúncias, ou pelo 190, que é nosso telefone de emergências. Apuramos tudo — afirma.
Nos últimos cinco anos, pelo menos 57 PMs acabaram excluídos da corporação, segundo a Corregedoria.
Os casos Gabriel e Rai
Nesta segunda-feira (29), a perícia apontou que, quando teve o corpo jogado na água, Gabriel Cavalheiro não estava mais com vida. A causa da morte foi uma hemorragia interna, provocada por agressão com algum objeto rígido, que lhe atingiu logo abaixo do pescoço. Ainda que o corpo estivesse submerso, não havia qualquer sinal de afogamento. Gabriel tinha ainda um pequeno hematoma na cabeça, mas sem relação com a causa da morte. O resultado foi apresentado durante coletiva à imprensa.
— Não é algo que nos traga conforto, mas deixa claro o quanto a instituição (BM) é séria. Nossos serviços são vocacionados a aplicar a lei e salvar vidas. Mas nós somos 18 mil. Por melhor que sejam nossa formação e nossos atos de manutenção de instrução, temos esse componente humano, que existe em qualquer organização. Infelizmente, quando esse componente se manifesta desta forma, não nos resta outra alternativa senão extirpá-lo dos nossos meios — garante o comandante-geral da BM, o coronel Cláudio dos Santos Feoli.
O caso de Gabriel não é o único que despertou a atenção neste ano. Na semana passada, Rai Duarte recebeu alta do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, após 116 dias internado. O torcedor do Brasil de Pelotas afirma ter sido espancado por PMs, após o jogo entre São José e Brasil, pela Série C do Brasileirão na Capital. A Corregedoria-Geral da Brigada Militar investiga o caso. O inquérito já ouviu Rai Duarte, testemunhas e os policiais envolvidos no episódio.
— Há mais de quatro meses, estamos buscando uma mudança de cultura institucional. Avaliando procedimentos, também avaliando o perfil do policial, para que nós possamos selecionar da sociedade pessoas com perfil atualizado. Só que toda mudança de cultura organizacional depende de consistência, de continuidade. Tem que ser perene, por gerações. Para isso, vamos fazer um congresso com todos os oficiais, todos os gestores. Nós buscamos a excelência na prestação dos nossos serviços — dizFeoli.
O secretário da segurança do RS, Vanius Santarosa sustenta que a forma como os PMs agiram no caso Gabriel não condiz com os serviços prestados pela instituição.
— Essa ocorrência não reflete o que é a BM. Lamentamos muito o desfecho dessa ocorrência. É preciso separar a atuação dessa guarnição das demais. Nos solidarizamos com a dor da família do Gabriel. Não há palavras que eu possa dizer aqui que vá confortar o coração da família. Todo policial quando ingressa nas fileiras das polícias jura defender a sociedade com o risco da própria vida. Esses três policiais não cumpriram isso — diz o secretário.
Câmeras corporais
Após o caso da morte de Gabriel, a Brigada Militar confirmou que existe a intenção de adquirir 900 câmeras corporais para serem usadas pelos PMs em serviço. Os equipamentos deverão ser utilizados inicialmente pela BM de Porto Alegre, Região Metropolitana, Vale dos Sinos e Serra. Até o fim deste ano, devem ser destinadas cerca de 300 câmeras à BM da Capital.
Até maio deste ano, foram realizados testes dos equipamentos, tanto em Porto Alegre, como durante a Operação Golfinho, no Litoral. O equipamento possui gravação contínua e tem autonomia para gravar 12 horas ininterruptas. Após o serviço, o PM devolve a câmera no batalhão e as imagens são transmitidas para um servidor que armazena as gravações. O acesso é exclusivo à gestão das unidades da BM. A tecnologia permite garantir que as imagens não sejam copiadas diretamente da câmera por nenhum dispositivo e que não podem ser editadas.
"Além de qualificar o conjunto de provas das práticas ilícitas, contribuindo para a efetividade da análise criminal, o emprego das câmeras corporais deve aumentar a transparência e a fiscalização das ações policiais e do uso da forca, bem proteger o policial em serviço no que tange à reação das pessoas em conflito com a lei, pela percepção de que estão sendo gravadas", afirmou a BM em nota.
A defensora pública concorda que o uso das câmeras permitirá que se elucide as circunstâncias envolvendo abordagens de forma mais rápida.
— O vídeo e o áudio gravados antes, durante e depois de abordagens em que haja confronto entre as partes podem fornecer um material valioso para determinar a inadequada ou adequada adoção dos procedimentos operacionais pelos policiais envolvidos — afirma Aline.
* Colaborou Eduardo Matos
Orientações
Da Defensoria
- As pessoas que tenham sido vítimas de algum tipo de violência policial podem buscar a Defensoria Pública mais próxima da sua residência ou contatar diretamente o Núcleo de Defesa de Direitos Humanos pelo telefone 0800-644-5556.
- A orientação da Defensoria é para que as pessoas indiquem o máximo de provas possível, como possíveis testemunhas que tenham presenciado a abordagem, eventuais filmagens, laudos médicos e fotografias de eventuais lesões, entre outros. Também é importante formalizar a denúncia o mais breve possível.
- Durante os atendimentos, são colhidos os relatos e possíveis provas indicados pela vítima. Se houver concordância, é formalizada a denúncia que será encaminhada à corregedoria responsável. A Defensoria também analisa a viabilidade de eventuais medidas judiciais, como ações indenizatórias.
Da Corregedoria
- Os casos de violência policial também podem ser denunciados pelo Disque-Denúncia, que é o 181.