O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, espancado até a morte por seguranças do hipermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre, não foi caso isolado de violência contra negros cometida por forças de segurança públicas ou privadas no Rio Grande do Sul.
A ocorrência de episódios anteriores levou o governo estadual a planejar pelo menos duas iniciativas que buscam mitigar os crimes de cunho racial, uma delas coordenada pela Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH) e outra pela Polícia Civil. Apesar de estarem em andamento, nenhuma delas decolou efetivamente até o momento rumo às medidas práticas de enfrentamento do problema.
Em 19 de abril, o engenheiro eletricista Gustavo Amaral, 28 anos, se deslocava para trabalhar quando deparou uma barreira da Brigada Militar que procurava assaltantes de carro na RS-324, em Marau. O policial que fez o disparo fatal relatou que Amaral, um jovem negro, teve o seu telefone celular confundido com uma arma.
Pouco mais de um mês depois deste caso, o angolano Gilberto Andrade de Casta Almeida, 26 anos, foi alvejado por diversos tiros em Gravataí antes que pudesse explicar aos policiais que era apenas passageiro de um motorista de aplicativo que resolveu furar uma barreira. Almeida chegou a ficar 12 dias preso, mesmo sem ter cometido nenhum delito, e a amiga que o acompanhava, Dorildes Laurindo, morreu em consequência dos tiros que recebeu.
Motivado pelo caso de Amaral, o governador Eduardo Leite e o secretário da SJCDH, Mauro Hauschild, formalizaram em 22 de julho a criação do grupo de trabalho para debater temas relacionados à violência contra a população negra.
O governo estadual anunciou que um dos objetivos era a capacitação e recapacitação para a atividade policial. Foi estabelecido prazo de 120 dias para o diagnóstico de problemas no grupo, integrado por diversos setores do Executivo, pelo Ministério Público e pela sociedade civil, com posterior entrega de um relatório final de atividades, contendo sugestões de medidas concretas a serem tomadas.
O prazo está por se esgotar em novembro, mas a lista de políticas públicas não está finalizada. Hauschild diz que o objetivo é entregar o relatório final “em dezembro, na semana antes do Natal”.
Ele explica que a intenção é agir em dois eixos: aprofundar, com o apoio da Secretaria da Educação, o conceito de igualdade e repúdio ao preconceito nas escolas e, em paralelo, ter um plano de ação para qualificar o policial a atuar em ocorrências envolvendo a população negra.
— Pretendemos construir uma série de ações, que ainda estão em discussão, sobre medidas que podemos adotar para melhorar o plano de abordagem das polícias civil e militar. Associando ao fato de hoje (morte de João Alberto Silveira Freitas), a intenção é passar isso também aos vigilantes privados, para que eles passem também por um processo de formação em Direitos Humanos, com políticas públicas para que não usem o preconceito no exercício da sua atividade — aponta Hauschild.
O secretário evita apontar, a partir das discussões já feitas, quais seriam as culturas que precisam mudar nas ações policiais e abordagens para evitar novos crimes.
— A gente precisa fazer uma divisão de atribuições. Aqui na SJCDH vamos trabalhar a formação humana, os valores, os princípios e o comportamento. No âmbito das academias da Polícia Civil, da Brigada Militar e dos Bombeiros, esses princípios e valores passam a nortear suas formações de abordagem, forma de contato físico. Tudo isso precisa ser avaliado, mas não posso invadir a esfera de atribuição dos comandantes. Eles poderão rever os processos — diz Hauschild.
Pouca evolução no diagnóstico
Representantes da sociedade civil com assento no grupo de trabalho dizem que os debates ocorrem quinzenalmente, conforme previsto, mas avaliam que houve pouca evolução no diagnóstico de problemas.
— Acredito que serão levadas propostas muito por aquilo que já se sabe, e não por avanços do grupo de trabalho. Ainda não foram debatidas as revisões de práticas. A polícia e o Ministério Público se defenderam o tempo inteiro nesse grupo de trabalho, ninguém levou dados, ninguém abriu a caixa preta da formação policial, dos protocolos de formação. Não se avançou nisso, mas deveríamos ter olhado para dentro dos protocolos das polícias e do MP, que fiscaliza as ações — avalia Cristina Schwarz, integrante do grupo de trabalho pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos.
O sociólogo Gilvandro Antunes, membro do colegiado como representante do movimento Vidas Negras Importam, ressalta que os diálogos sempre são marcados pelo respeito entre as partes, mas também demonstra ceticismo quanto a avanços.
— Há muitas divergências dentro do grupo de trabalho. Há setores da Brigada Militar que tentam minimizar a questão das abordagens policiais, e os movimentos sociais sempre se colocam contra isso — diz Antunes.
Também membro do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, Cristina diz “desconhecer” o método de trabalho e faz crítica a uma das reuniões em que foi aberto espaço para manifestação do MP. A reclamação, corroborada por outros integrantes da sociedade civil, foi de que o promotor Luciano Vaccaro, que representava o MP no encontro, não apresentou dados sobre a fiscalização da atividade policial e defendeu as conclusões de um colega promotor no caso de Amaral, com pedido de arquivamento diante da argumentação de que não haviam provas de crime.
— Eu fui convidado a participar de uma reunião virtual. Abri o link, entrei na reunião e o secretário dos Direitos Humanos (SJCDH) disse: "Vamos ouvir agora a palestra do dr. Luciano Vaccaro sobre o controle interno da atividade policial". O que eu falei? Houve algum ruído aí, eu fui convidado a participar de uma reunião, não para dar palestra. Eu desconhecia isso e não me preparei — justifica Vaccaro, coordenador do Centro de Apoio Criminal e de Segurança Pública do MP.
Diante da situação, para não desperdiçar tempo, Vaccaro disse ter se colocado à disposição para responder a dúvidas sobre o controle externo que o MP faz da atividade policial.
— Os questionamentos foram em cima do caso de Marau. Eu, de peito aberto, respondi. Ninguém me pediu dados nem eu preparei nada porque o convite era para uma reunião. O MP já tinha posicionamento sobre o caso de Marau, que não era meu, mas de um colega que atuou no caso e pediu arquivamento entendendo que o policial não praticou nenhum crime contra o Gustavo. Foi isso que eu coloquei — explica Vaccaro, declarando-se aberto para receber pedidos de dados sobre a segurança pública.
Para os membros da sociedade civil, a elaboração do relatório final será o momento decisivo para analisar os resultados da iniciativa.
— Se isso vai ser uma mera propaganda do governo estadual, vamos saber a partir do relatório. Os movimentos sociais vão assinar esse documento dependendo do seu conteúdo. Nós, por exemplo, só vamos assinar se houver o comprometimento do governo estadual de que é preciso ter câmeras em todas as fardas e em todas as viaturas — antecipa Antunes.
Polícia Civil vai inaugurar a Delegacia da Intolerância
A segunda medida do governo estadual com o objetivo de combater os crimes raciais está mais próxima de ser concretizada. Está prevista para o dia 10 de dezembro a inauguração da Delegacia da Intolerância, criada especificamente para atender crimes de racismo, injúria racial, perseguição religiosa e também delitos contra outras grupos vulneráveis, como os portadores de deficiências e a população LGBT.
A delegacia ficará em Porto Alegre, em prédio da Polícia Civil que está em reta final de reforma. O endereço, por enquanto, é mantido sob sigilo. A criação da Delegacia da Intolerância está prevista, desde janeiro de 2019, a partir da inauguração do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV), que não existia até então.
A célula é destinada a atender crimes contra idosos, crianças e adolescentes, mulheres e, agora, os delitos de racismo na estrutura que está por abrir as portas.
O plano inicial era abrir a Delegacia da Intolerância no início de 2020, mas atrasos impediram que isso fosse possível, jogando a inauguração para o final deste ano.
— É uma meta da nossa gestão que atrasou um pouco por causa da pandemia, era inclusive para ter sido inaugurada hoje (sexta, dia 20), mas pediram mais 15 dias pelo menos para finalizar a obra. Por isso, marcamos para o Dia dos Direitos Humanos (10 de dezembro). Queríamos que tivesse acontecido antes, não foi possível, mas ainda estamos dentro do cronograma. A ideia era abrir em 2020 — informa a chefe de Polícia, Nadine Anflor.
A ideia da Delegacia da Intolerância é trabalhar dois eixos prioritários. Um deles será educacional, com a produção de cartilhas ao público externo que já estão disponíveis no site da Polícia Civil. Neste caso, o objetivo é gerar "mudança de atitude, mais empatia e menos intolerância".
A outra baliza, diz Nadine, é o "apontamento da autoria, a materialidade dos crimes e a efetiva punição dos delitos".
— A existência de espaço especializado na Polícia Civil vai trazer olhar diferenciado no momento da investigação criminal. Eles (policiais) estarão ali só para fazer isso. Não é como hoje, em que esse tipo de delito (racial) concorre com homicídios, roubos de veículos e patrimoniais. Acaba sendo mais um caso dentro de qualquer delegacia distrital. Tenho certeza que isso vai fazer as pessoas denunciarem mais no primeiro momento — projeta a chefe de Polícia.
Ela explica que os policiais que atuarão na Delegacia da Intolerância foram capacitados durante a pandemia.
— Não posso colocar para trabalhar numa Delegacia de Intolerância um policial que não tenha empatia e que não saiba o que é racismo ou transfobia. Tivemos de fazer todo um trabalho que contou com a sociedade civil, que nos disse como receber bem (as vítimas) — afirmou Nadine.