João Alberto Silveira Freitas, o Beto, 40 anos, morreu espancado dentro do supermercado que ficava a 400 metros da sua casa. Dia sim, dia não, ia até o Carrefour no bairro Passo D'Areia, em Porto Alegre. Era conhecido dos operadores de caixa e havia convencido o pai, João Batista Rodrigues, 65 anos, a fazer o cartão do supermercado para poder pagar as compras em uma fatura única no final do mês.
Na noite de quinta-feira (19), foi com a esposa, a cuidadora de idosos Milena Borges Alves, comprar a janta do casal. Saiu de lá sem vida após ser agredido pelos seguranças. Beto será sepultado às 11h deste sábado (21) no Cemitério Municipal São João:
— Nunca nos sentimos ameaçados no supermercado. Nunca ofendemos ninguém. Íamos lá, brincávamos com o pessoal, comprávamos uma carne para assar. Nunca ninguém nos ameaçou. Várias moças do caixa conheciam ele, acredito que até esses covardes o conheciam. Nós, que somos classe trabalhadora e pobre, vemos o racismo todos os dias. Meu filho foi morto por isso. Quando cheguei, ele já estava no chão do estacionamento. Meu coração ficou dilacerado — afirma Rodrigues.
Amigo de Beto, o ajudante de motorista José Augusto Gama Gulart, 25 anos, afirma que, mesmo branco, sentia o ambiente hostil e o olhar desconfiado de funcionários quando ia ao Carrefour:
— Quando vou com camiseta de time, eles andam atrás. Parece que querem que tu saia o quanto antes de dentro do mercado. Te intimidam. Tu está escolhendo algo e eles estão a dois, três passos de ti, te cuidando. Se tu está com um negro e com camiseta de torcida, o racismo está sempre presente.
GZH conversou com cinco pessoas próximas a Beto. Nenhuma delas disse lembrar de relatos dele de que se sentia vítima de preconceito, mas todas reforçaram que o racismo sempre perseguiu Beto:
É preto, tem tatuagem, está com chinelo de dedo e bermuda. Infelizmente, o que as pessoas fazem? Julgam pela aparência. Acham que pode espancar até a morte e não vai dar nada.
FAMILIAR DE JOÃO ALBERTO
Preferiu não se identificar
— É preto, tem tatuagem, está com chinelo de dedo e bermuda. Infelizmente, o que as pessoas fazem? Julgam pela aparência. Acham que pode espancar até a morte e não vai dar nada — afirma uma familiar que preferiu não ter a identidade publicada.
Filho mais velho de um motorista e uma industriaria que morreu em 2017, Beto nasceu e cresceu no bairro Humaitá, na zona norte de Porto Alegre, junto com a irmã de 34 anos. É pai de quatro filhos — três meninas e um menino. A filha mais velha, da primeira relação, e os outros três de um segundo casamento. Agora, vivia com Milena em um condomínio na Vila do IAPI junto com o gato Chuxo e próximo do pai. Beto e Milena, que tinham união estável, faziam planos de casar.
Em 2002, um acidente de trabalho tirou parte do movimento de uma das mãos de Beto, quando atuava na jardinagem do aeroporto Salgado Filho. Por isso, recebia pensão. Desde então, passou a fazer bicos como autônomo: servente de pedreiro e serviços gerais. À GZH, o pai confidenciou que ele e o filho planejavam fazer um financiamento para comprar um veículo utilitário e prestar serviços transportando alimentos na Ceasa. Era uma estratégia para aumentar a renda fixa.
Pai e filho ficaram juntos por mais de cinco horas no último dia de vida de Beto. O filho chegou por volta do meio dia na casa do pai. Rodrigues cozinhou para os dois. Mais tarde, convidou o filho para ir no culto evangélico à tardinha. Beto titubeou, mas desistiu. Fizeram mais um lanche e, às 17h, deixou o filho em casa. Enquanto falava com GZH na manhã de sexta em frente ao Departamento Médico Legal (DML), o motorista aposentado procuravas respostas.
Nós, que somos classe trabalhadora e pobre, vemos o racismo todos os dias. Meu filho foi morto por isso. Quando cheguei, ele já estava no chão do estacionamento. Meu coração ficou dilacerado.
JOÃO BATISTA RODRIGUES
Pai de João Alberto
— Como é que se juntam entre dois ou três para matar meu filho? Ninguém tem razão para tirar a vida de ninguém.
José Ricardo Rosa da Silva, 51 anos, que cresceu com Beto no Humaitá, conta que o primo era um cara na dele, não tinha por hábito se meter em confusão, mas não era o tipo que levava desaforo para casa:
— Ao tratar bem ele, tu tirava o melhor do que o Beto tinha. Não havia por que bater nele com aquela raiva.
"Só ficava nervoso quando o Zeca estava perdendo", diz amigo
A grande paixão de Beto era o Esporte Clube São José, especialmente se as partidas vinham acompanhadas de churrasco, cerveja e os amigos da Vila do IAPI. Integrante da torcida organizada, não perdia um jogo e se chateava quando o Zequinha não desempenhava bem em campo.
— Era engraçado, brincalhão, só ficava nervoso quando o Zeca estava perdendo. Era um cara de fala mansa, pessoa serena. Tinha a voz rouca. Quando via a gurizada querendo se exaltar, já pedia para se acalmarem. Era um cara que prezava pelo certo. Quando vi o vídeo (da agressão), não o reconheci. Não caiu a ficha, é uma loucura. Isso não se faz nem para cachorro — diz Gulart.
Era um amigo para todas as horas, independentemente de qualquer coisa. Era um cara faceiro. Ninguém está acreditando no que aconteceu. Todos nós íamos direto no Carrefour, agora vamos rever isso. Não vamos dar dinheiro para quem matou um amigo nosso ou foi conivente com a situação
CARLOS EDUARDO BORGES CARNEIRO
Representante da torcida organizada do São José
Na última vez que viu o amigo, em um sábado sol do mês de outubro, foi no primeiro churrasco com alguns integrantes da torcida desde o começo da pandemia:
— Eu estava até sem dinheiro e ele disse para eu ir mesmo assim que ele pagava a cerveja. Estávamos assistindo o jogo Inter e São Paulo, ele estava feliz e tiramos uma foto juntos.
A vida de Beto se dava entre os bairros Passo D'Areia e a Vila do IAPI, no circuito onde morava com Milena, estava perto do pai, nas cercanias do estádio do São José e dos amigos mais próximos.
— Somos amigos de bairro e torcida. Era um amigo para todas as horas, independentemente de qualquer coisa. Era um cara faceiro. Gostava de churrascos durante a semana. Era um cara que nunca dizia não. Ninguém está acreditando no que aconteceu. Quando eu recebi o telefonema eram 23h. Não acreditei. Todos nós íamos direto no Carrefour, agora vamos rever isso. Não vamos dar dinheiro para quem matou um amigo nosso ou foi conivente com a situação — afirma Carlos Eduardo Borges Carneiro, 26 anos, representante da torcida organizada do São José.