Ao tentar descrever o gesto do marido à funcionária do Carrefour, Milena Borges Alves repete: "Ele só fez assim com a mão (faz um gesto de "sai, sai"), nada de mais, era um brincalhão". A cuidadora de idosos estava ao lado de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, no momento em que ele foi abordado por cinco pessoas que atuavam no estabelecimento – três homens e duas mulheres, segundo ela – e conduzido para o estacionamento do mercado. No local, foi espancado até a morte.
— Eu estava pagando no caixa. Ele desceu na minha frente. Quando cheguei, ele já estava imobilizado. Ele pediu ajuda, quando fui, os seguranças me empurraram — afirma a esposa, emocionada.
Ainda consciente, no chão, Freitas chamou pela companheira.
— Ele disse: "Milena me ajuda", mas os seguranças não deixaram me aproximar. Seguiram com o pé em cima dele, e quando desmaiou, continuaram com o pé em cima dele. Um pé nas costas, eu vi — relatou, na manhã desta sexta-feira (20), quase 12 horas após o fato.
A esposa do homem, aposentado por invalidez, relatou não ter acompanhado o marido, pois ficou no caixa pagando as compras.
— Ninguém me disse nada depois que ele estava desmaiado — relembra, interrompendo novamente a fala, engasgada.
Milena passou a madrugada no Palácio da Polícia. O pai da vítima cuidou dos trabalhos de liberação do corpo, no Departamento Médico-Legal (DML).
O casal não tem filhos, vivia apenas com o gato Chuxo. A mãe de Milena vive no mesmo condomínio e presta apoio à filha.
Amigos dizem que era tranquilo
João Alberto era conhecido como Beto na região do bairro Passo D’Areia e do IAPI, onde viviam há nove anos. O apartamento em que moram fica a 600 metros do mercado no qual o crime foi registrado. Muito próximo também do Estádio Passo D'Areia.
— A gente ia junto nos jogos — conta o amigo Sidnei Bitencourt, que usava um casaco do São José, time do coração dos dois.
Nas ruas do entorno do estádio, vizinhos e comerciantes relembram de Beto.
— Um cara que não fazia mal para ninguém. Fazia churrasco por aqui sempre — contou Marco Antônio da Silva Pereira, dono de uma estofaria.
A carne, acompanhada da cerveja, também é citada por Sérgio Gozdzik, 49 anos, dono de um bar do bairro:
— Sem bronca com ninguém. Aqui sempre se comportou.
Na praça em frente a uma lancheria, o chaveiro se espanta ao ver a foto da vítima. Outro frequentador aponta para uma praça onde ele costumava descansar.
— Um parceirão. E bem no dia da consciência negra — finaliza o eletricista Fernando Pithan, 61.
Entenda
O fato ocorreu na noite desta quinta-feira (19) e, de acordo com informações preliminares, foi precedido por uma discussão dentro do estabelecimento com uma funcionária, um segurança da empresa terceirizada Grupo Vector e um PM temporário. Os dois homens, identificados como Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva, foram detidos e presos em flagrante por homicídio qualificado.
Segundo o delegado Leandro Bodoia, plantonista da Delegacia de Homicídios, a funcionária do Carrefour, que atua como fiscal de caixa, afirma que João teria feito um gesto que ela interpretou como uma tentativa de agressão. A mulher se sentiu ameaçada e chamou os seguranças, que levaram o cliente para fora do estabelecimento. Freitas foi imobilizado e espancado do lado de fora do Carrefour, no estacionamento.
— Ele fez um gesto com a mão. Ele era muito brincalhão, estava sempre brincando — afirma Milena.
O que diz a Brigada Militar
"Imediatamente após ter sido acionada para atendimento de ocorrência em supermercado da Capital, a Brigada Militar foi ao local e prendeu todos os envolvidos, inclusive o PM temporário, cuja conduta fora do horário de trabalho será avaliada com todos os rigores da lei.
Cabe destacar ainda que o PM Temporário não estava em serviço policial, uma vez que suas atribuições são restritas, conforme a legislação, à execução de serviços internos, atividades administrativas e videomonitoramento, e, ainda, mediante convênio ou instrumento congênere, guarda externa de estabelecimentos penais e de prédios públicos.
A Brigada Militar, como instituição dedicada à proteção e à segurança de toda a sociedade, reafirma seu compromisso com a defesa dos direitos e garantias fundamentais, e seu total repúdio a quaisquer atos de violência, discriminação e racismo, intoleráveis e incompatíveis com a doutrina, missão e valores que a Instituição pratica e exige de seus profissionais em tempo integral."
O que diz o Carrefour
"O Carrefour informa que adotará as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos neste ato criminoso. Também romperá o contrato com a empresa que responde pelos seguranças que cometeram a agressão. O funcionário que estava no comando da loja no momento do incidente será desligado. Em respeito à vítima, a loja será fechada.
Entraremos em contato com a família do senhor João Alberto para dar o suporte necessário. O Carrefour lamenta profundamente o caso. Ao tomar conhecimento deste inexplicável episódio, iniciamos uma rigorosa apuração interna e, imediatamente, tomamos as providências cabíveis para que os responsáveis sejam punidos legalmente.
Para nós, nenhum tipo de violência e intolerância é admissível, e não aceitamos que situações como estas aconteçam. Estamos profundamente consternados com tudo que aconteceu e acompanharemos os desdobramentos do caso, oferecendo todo suporte para as autoridades locais."
O que diz a empresa Vector
“O Grupo Vector, através de seu advogado, vem a público informar que lamenta profundamente os fatos ocorridos na noite de 19/11/2020, se sensibiliza com os familiares da vítima e não tolera nenhum tipo de violência, especialmente as decorrentes de intolerância e discriminação.
Informa que todos seus colaboradores recebem treinamento adequado inerente as suas atividades, especialmente quanto à prática do respeito às diversidades, dignidade humana, garantias legais, liberdade de pensamento, ideologia política, bem como à diversidade racial e étnica.
A empresa já iniciou os procedimentos para apuração interna acerca dos fatos e tomará as medidas cabíveis, estando à disposição das autoridades e colaborando com as investigações para apuração da verdade.”