O maior preparo e a intensificação dos treinamentos da Brigada Militar ajudaram a zerar o número de policiais mortos em serviço no primeiro semestre deste ano. Em igual período do ano passado, a tropa já havia perdido três PMs. Por outro lado, o total de civis mortos pela BM alcançou o maior patamar em 20 anos, superando toda série histórica divulgada pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), que reúne dados desde 2001. Nos primeiros seis meses de 2020, 74 pessoas perderam a vida em ocorrências com a Brigada Militar no Rio Grande do Sul. O total representa crescimento de 57% em relação ao mesmo período do ano passado – quando foram registradas 47 mortes.
Neste primeiro semestre, há pelo menos dois episódios nos quais morreram pessoas que não enfrentavam a BM: o engenheiro Gustavo dos Santos Amaral, 28 anos, foi morto enquanto estava indo trabalhar e parou em uma barreira, na RS-324, em Marau, no Norte, em 19 de abril. Foi baleado ao ser supostamente confundido com um bandido. Em 17 de maio, durante abordagem a um carro de aplicativo em Gravataí, na Região Metropolitana, conduzido por um motorista foragido, a costureira Dorildes Laurindo, 56 anos, foi atingida por três tiros. Morreu 16 dias depois no hospital.
Nesta terça-feira (8), Gustavo completaria 29 anos. O irmão gêmeo Guilherme acompanha o andamento do processo que está na promotoria do júri e compara com o episódio que vitimou a costureira:
— As situações (Dorildes e Gustavo) foram iguais, não houve confronto e isso se revelou nas investigações. Os policiais decidiram que quem faria a Justiça era eles, acabaram atirando não para amenizar a situação daquele momento, mas para matar sem saber quem é. No caso do meu irmão, atiraram para matar.
O comandante-geral da BM, coronel Rodrigo Mohr Picon, reconhece como problemáticas as ocorrências de Marau e Gravataí:
— Isso pesa muito para nós. Pesa para toda BM. São ocorrências dolorosas para todos os PMs. Nunca queremos um resultado não seja o melhor para a sociedade. Quando acontece isso é doloroso. Nos faz treinar mais, estudar o que aconteceu e eliminar qualquer possibilidade de erro, para que não se repita. O erro quando envolve arma não é permitido. O PM não pode errar quando puxa sua arma.
O maior número de civis mortos em 20 anos pela BM foi atingido em um cenário de queda nos índices de criminalidade no Estado. Em 2019, o Rio Grande do Sul alcançou a menor taxa de homicídios da década: 15,8 para cada 100 mil habitantes. Redução que vem se confirmando também no primeiro semestre de 2020 ao impactar outros indicadores como os ataques a bancos no Estado, que despencou pela metade na comparação com o mesmo período do ano passado.
Para chegar a esse cenário, o coronel Mohr argumenta que a BM tem aumentado o enfrentamento ao tráfico de drogas e aos crimes de roubo, mirando as quadrilhas organizadas. Com isso, tem focado em ações de pronta-resposta. De acordo com o comando-geral trata-se de uma reação imediata e simultânea de várias unidades da BM: Batalhão de Choque, Batalhão de Operações Especiais (Bope), Batalhão de Aviação e Forças Táticas, com envolvimento que vai do comandante regional ao soldado.
— Nossa pronta-resposta é muito forte, isso faz com que haja maior número de confrontos. Temos uma média de quatro a cinco confrontos por dia na BM no Estado. É um número bastante alto, em muitas ocorrências deparamos com quadrilhas organizadas. Os crimes com roubo e violência à pessoa têm uma resposta muito forte e rápida para fazer a prisão — diz o coronel.
"Entramos onde marginal está com fuzil, pistola", diz comandante-geral da BM
De janeiro a junho deste ano, foram registrados 884 confrontos com a BM e seis deles concentram 20 mortos _ 27% do total do semestre. A mais emblemática aconteceu na madrugada de 6 março, em Paraí, na Serra, quando sete assaltantes prontos para explodir duas agências foram cercados pela BM e morreram durante a troca de tiros.
Também em março, em Pelotas, no Sul, três sequestradores foram mortos durante ação da BM que interceptou o grupo momentos após um empresário ter sido feito refém. Houve troca de tiros e o trio acabou morto. A vítima saiu ilesa. Em abril, a partir de informações da inteligência, que monitorava integrantes de uma quadrilha com planos para atacar criminosos rivais, foi realizada abordagem a um veículo em Canoas, na Região Metropolitana. Três homens reagiram a tiros e acabaram mortos.
Não temos essa função (de matar), não treinamos o pessoal para isso. Não acredito que confronto que mate o criminoso seja bom. Não trabalhamos com isso. Quando há confronto, é uma opção do criminoso. Se ele se entregar, será preso sem se tocar num fio de cabelo dele. E se for, será aberto inquérito.
CORONEL RODRIGO MOHR PICON
Comandante-geral da Brigada Militar
— Não temos essa função (de matar), não treinamos o pessoal para isso. Não acredito que confronto que mate o criminoso seja bom. Não trabalhamos com isso. Quando há confronto, é uma opção do criminoso. Se ele se entregar, será preso sem se tocar num fio de cabelo dele. E se for, será aberto inquérito. A morte do marginal nunca é o objetivo. Só acontece se houver confronto — afirma Mohr.
Como exemplo de ação bem sucedida, o coronel cita a prisão de sete criminosos em 3 de agosto em Novo Barreiro, no Norte. Os criminosos não reagiram e não houve confronto. A quadrilha se preparava para assaltar um comércio quando foi detida.
— Forem entregues sem nenhum arranhão. Isso é questão de técnica policial e insistimos nisso. Não é essa violência que as pessoas querem. É uma ação forte e dentro da lei.
Com a redução dos indicadores criminais, a BM tem a percepção de que está avançando em ações que chegam até a cúpula das organizações criminosas, o que leva, na visão do coronel, ao enfrentamento de criminosos mais armados e dispostos ao confronto.
Se o criminoso não se rende, a polícia atira para se salvar. E não atira na perna, atira no peito. Isso é padrão internacional como melhor forma de neutralizar ameaça grave. Polícia chega mais rápido, o confronto aumenta. O que é preocupante é que letalidade policial não reduz violência. Há necessidade de investigar cada morte para verificar se aconteceram dentro dos limites legais.
JOSÉ VICENTE SILVA FILHO
Coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional da Segurança Pública de Fernando Henrique Cardoso
— Estamos entrando no núcleo duro da criminalidade. Com armamento mais poderoso, eles se sentem com a possibilidade de reagir e obter sucesso contra a polícia. Isso já vem de outros anos, o embate está ficando mais violento. Entramos onde o marginal está com fuzil, pistola.
De acordo com um levantamento do G1, nove estados além do Rio Grande do Sul tiveram acréscimo de 40% ou mais no número de pessoas mortas pela polícia em 2020. Coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional da Segurança Pública de Fernando Henrique Cardoso, José Vicente Silva Filho acredita que os meses de distanciamento social criaram dinâmica criminal diferente em que a polícia tem mais facilidade de enxergar locais de delitos e ganhou velocidade de deslocamento, o que acaba impactando no encontro do criminoso, especialmente em caso de assalto.
— Se o criminoso não se rende, a polícia atira para se salvar. E não atira na perna, atira no peito. Isso é padrão internacional como melhor forma de neutralizar ameaça grave. Polícia chega mais rápido, o confronto aumenta. O que é preocupante é que letalidade policial não reduz violência. Há necessidade de investigar cada morte para verificar se aconteceram dentro dos limites legais.
Casos deste ano geraram 51 inquéritos policiais militares
Quando um civil é morto por PM é aberto um Inquérito Policial Militar (IPM) no batalhão. Um oficial com cargo superior ao do o policial é designado para fazer a investigação, ouvindo testemunhas civis e militares envolvidos. O IPM tem prazo de 40 dias, prorrogáveis por mais 60. Os 74 mortos no primeiro semestre de 2020 geraram 51 IPMs. Ao ser concluído, é enviado para o cartório do Tribunal de Justiça Militar e é distribuído a um promotor de Justiça. GZH solicitou ao TJM quantos IPMs de 2020 envolvendo homicídios já chegaram ao cartório, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Nos meus processos, não notei diferença, não cheguei a observar atos em que estão matando por matar. É muito fácil falar na teoria, mas para quem está na linha de tiro e sendo alvo de disparos, não é bem assim. Eles (criminosos) estão mais audaciosos, havia, anos atrás, uma preocupação maior em não atirar contra a BM. Hoje em dia não estão nem aí.
LUCIA HELENA CALLEGARI
Promotora da 1ª Vara do Júri
Cabe ao promotor avaliar o relatório, decidir se oferece denúncia, se pede arquivamento ou ainda se solicita outras diligências. Em caso de denúncia, o processo é julgado pelo Tribunal do Júri, formado por jurados civis. Promotora da 1ª Vara do Júri desde 2004 e uma das responsáveis por avaliar mortes de civis por PMs, Lucia Helena Callegari não considera que o aumento do número de mortos esteja ligado ao avanço da violência ou da truculência na ação dos policiais. De acordo com a promotora, via de regra, os policiais agem legitimados pela situação de confronto que se estabelece.
— Não lembro de nenhum caso deste ano que tenha havido excesso. Nos meus processos, não notei diferença, não cheguei a observar atos em que estão matando por matar. É muito fácil falar na teoria, mas para quem está na linha de tiro e sendo alvo de disparos, não é bem assim.
Na avaliação da promotora, a transferência de líderes de facções para prisões federais e a queda dos índices de homicídios, observada especialmente em 2019, pode se contrapor, em 2020, ao benefício de prisão domiciliar dado a apenados sob justificativa da pandemia.
— Muitos foram para a rua e isso terá reflexo. Muitos réus meus foram colocados em prisão domiciliar, mas não estão em casa, querem retomar o território. E aí há confronto não só com policial, mas entre eles mesmos. Eles (criminosos) estão mais audaciosos, havia, anos atrás, uma preocupação maior em não atirar contra a BM. Hoje em dia não estão nem aí.
Há, segundo a promotora, casos pontuais em que o policial é denunciado e responde por homicídio.
— Toda vez que nos chegam homicídios que envolvem militar que mata civil, olhamos com a necessária cautela. Não está se arquivando tudo e nem está se denunciando tudo. A situação é avaliada caso a caso. Não passamos a mão só porque é PM.