A costureira Dorildes Laurindo, 56 anos, tinha pânico de alta velocidade. Dora, como era chamada por amigos e familiares, ficava angustiada quando o ponteiro do acelerador ultrapassava a marca dos 100km/h. O trauma veio após a perda do filho Jefferson, há 10 anos, em um acidente de carro em Arroio dos Ratos, na Região Carbonífera. O jovem de 26 anos morreu após colisão durante uma ultrapassagem quando estava indo fazer uma entrega de salgados. Além de lhe retirar o filho, o episódio trouxe aversão a motoristas que dirigem com imprudência.
Na madrugada de 17 de maio, ela e o angolano Gilberto Andrade de Casta Almeida, 26 anos, retornaram do Litoral Norte em um veículo contratado por um aplicativo de viagens quando o motorista Luiz Carlos Pail Junior furou um sinal vermelho e passou a ser perseguido pela polícia. O condutor não parou pois estava foragido da Justiça por tentativa de feminicídio. Apesar dos apelos do casal, a perseguição começou em Cachoeirinha e se estendeu até Gravataí, na Região Metropolitana, quando, enfim, Luiz Carlos parou. Gilberto e Dora permaneceram no veículo, mas, antes que pudessem explicar que eram passageiros, foram baleados. O motorista tentou escapar a pé, mas foi capturado. O caso é investigado pela Polícia Civil e a conduta dos PMs também será verificada em um inquérito policial militar (IPM).
— O veículo estava a 160km/h, chegava a 180km/h. Ela ficou muito angustiada. Falava: "Por favor, pare, vai nos parar". Ela gritava pedindo que parasse — recorda Gilberto.
Devido aos disparos, Dora ficou gravemente ferida e foi encaminhada para o Hospital Dom João Becker, em Gravataí, onde precisou ser internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Na terça-feira (2), foi constatado morte cerebral da costureira. Ainda sem data confirmada, o sepultamento será no Memorial da Colina, em Cachoeirinha.
— Só imagino desespero dela quando a fuga começou. Ela tinha grave problema com velocidade, tinha de ter paciência para dirigir com ela. Tínhamos de ir a 80km/h, não importava para onde fosse. Só assim ela ficava em paz. Chegava a mais que isso, ela se batia e se desesperava — afirma a irmã, a cabeleireira Marjori Maria Homes Luciano.
Dora nasceu em Criciúma (SC), perdeu o pai ainda menina e, aos seis anos, mudou-se com a mãe e os dois irmãos para Porto Alegre. Há quase três décadas, vivia em Cachoeirinha, onde criou Jefferson. Desde a morte do único filho, pouco saia de casa, localizada na Vila Anair, e evitava viajar. Há três meses, perdeu a mãe.
Abriu uma exceção para apresentar a praia a Gilberto, com quem conversava pelas redes sociais há quatro meses. Se conheceram pessoalmente em maio, quando o angolano, que mora há cinco anos no Brasil, veio a Porto Alegre. Dora buscou ele no aeroporto no dia 11, e, na Capital, lhe apresentou os estádios do Grêmio e do Internacional. Como o irmão tinha uma casa em Nova Tramandaí, levou o turista até o Litoral — era a primeira vez do angolano em praias brasileiras. Nos dias seguintes, seguiriam o tour até Gramado, na Serra, não fosse o desfecho trágico da primeira viagem.
Em Nova Tramandaí, almoçaram carreteiro e tiraram fotos à beira-mar. Dora não se banhou, mas Gilberto aproveitou.
— Era uma mulher muito alegre, comunicativa, amiga de todo mundo. Cheia de força e energia. Ela mesma me dizia que tinha tanta energia que nem correspondia com a idade dela. Falava com qualquer pessoa, independente da idade — afirma .
Marjori conta que a irmã já tinha feito passaporte e tinha planos de morar com Gilberto fora do Brasil — o angolano foi aprovado em um mestrado em Portugal. Em um vídeo feito no hospital, Dora, bem humorada, aparece pedindo Gilberto em casamento, dizendo que depois de tudo que passaram, o angolano não iria escapar dela. Dias depois, Marjori conta que a irmã reclamava de muita dor. Falou com Dora pela última vez há oito dias:
— Estava lúcida, mas muito sonolenta, dizia que a dor não passava e que não ia sair dessa. Que iria encontrar o filho e a mãe. Ela já estava nos preparando.
Dora gostava de redes sociais, vivia conectada à internet, não largava o celular e era vaidosa. Em qualquer almoço de família, aparecia maquiada e com salto alto. Adorava receber elogios e no seu perfil do Facebook dizia "estar a espera do meu príncipe". Com máquina de costura em casa, vinha trabalhando na confecção de máscaras. As habilidades do ofício permitiam que fizesse de peças de roupas elaboradas a pequenos reparos. A família agora irá vender as máquinas para custear as despesas do sepultamento.
Estávamos nos conhecendo, há uma semana convivendo juntos. Era querida por todos os vizinhos, oferecia máscaras para quem chegava. Era uma mulher cheia de vida, sorridente. Estou sentindo um vazio, até agora não caiu minha ficha.
GILBERTO DE CASTA ALMEIDA
— A lembrança que terei dela é de uma pessoa que não via diferença racial entre negros e brancos, não tinha distinção por cor ou status social. Estávamos nos conhecendo, há uma semana convivendo juntos. Era querida por todos os vizinhos, oferecia máscaras para quem chegava. Era uma mulher cheia de vida, sorridente. Estou sentindo um vazio, até agora não caiu minha ficha — afirma o angolano.
Contraponto
O comandante do 17º Batalhão de Polícia Militar, major Luiz Felipe Neves, lembrou que a corporação já está investigando o fato em um Inquérito Policial Militar (IPM). A apuração interna deve durar até a metade de julho.
O oficial prefere não comentar a conduta dos policiais, apesar de declarar que há "um indicativo de uma situação".
— Os indicativos são fortes. Ou seja: 35 disparos de arma de fogo por parte da Brigada Militar, duas pessoas feridas, sendo que uma dessas depois morreu. Então, de outra parte, outra arma apreendida, com três disparos de arma de fogo — detalhou Neves.
O comandante ainda informou que um capitão de conduta considerada isenta na corporação foi escolhido para coordenar a apuração. Depois, o resultado da investigação será passado para ele, que irá bater o martelo se necessita de mais provas e se há crime cometido pelos agentes.
Em função da ocorrência, os policiais foram afastados. Neves disse que o trio é experiente:
— Todos os três estão com comportamento excepcional ou ótimo. São muito bons policiais. Têm várias prisões. É uma guarnição que não é recruta, que tem um know how. Por isso tudo, o zelo e a cautela. Entendo o sofrimento das vítimas, mas não posso pré-julgar ninguém.
Procurado para comentar o caso, o comandante-geral da BM, coronel Rodrigo Mohr Piccon, informou, por meio da assessoria, que tinha compromissos e não poderia falar neste momento sobre o assunto.