Um exame do Instituto-Geral de Perícias (IGP) realizado nas mãos de Luiz Carlos Pail Júnior, 31 anos, não encontrou concentração suficiente de substâncias para indicar que ele tenha atirado contra uma guarnição da Brigada Militar, em Gravataí, na Região Metropolitana. O relato dos tiros contra a viatura foi usado para justificar a reação com 35 disparos por parte dos policiais. A ação dos agentes resultou na morte da passageira do carro, a costureira Dorildes Laurindo, 56, e nos ferimentos ao turista angolano Gilberto Casta Almeida, 26 — que ainda ficou 12 dias preso.
Foragido, Pail voltava do litoral gaúcho com os dois passageiros em 17 de maio. Ele usou um nome falso para se cadastrar na plataforma Blablacar — a viagem de ida foi feita no app, mas a de volta, não. Ao avistar uma viatura, ele fugiu, dando início a perseguição que resultou na ocorrência.
O resultado do exame foi comunicado na terça-feira (9) à Polícia Civil. A perícia detalha que foram encontrados alguns resquícios de substâncias nas mãos de Luiz Carlos, mas incompatíveis com a quantidade necessária para quem tenha realizado um disparo. O laudo pode ser determinante para que o Ministério Público dê seu aval sobre a existência de suposto crime por parte dos policiais ou não.
No entanto, há dúvida em investigadores do caso sobre a precisão do exame. A coleta dos indícios nas mãos de Luiz Carlos foi feita mais de 12 horas depois do momento em que os fatos aconteceram. Era por volta das 23h do dia 17 de maio quando a perseguição ao carro terminou, assim como os tiros foram ouvidos. O exame só foi feito na tarde do dia seguinte, 18 de maio, quando os próprios policiais civis levaram o homem até o IGP.
O diretor do Departamento de Perícias Laboratoriais do IGP, Daniel Scolmeister, explica que o recomendado é fazer o exame até 12h após o disparo para se ter maior probabilidade de localização dos resquícios. Quanto menor o intervalo, maior a precisão.
— Esses resíduos impregnados na mão podem sair facilmente. Então, na medida em que vai passando o tempo, ou por esfregaço, ou porque lavou a mão, ou se debruçou em alguma outra superfície, a possibilidade de detectarmos a presença dos três elementos vai ficando cada vez menor — comenta Scolmeister.
O perito ainda detalha que os agentes usaram um swab (equipamento semelhante a um cotonete) embebido em acido nítrico para procurar a presença de bário, chumbo e antimônio — os mesmos elementos provenientes da cápsula de uma arma.
Responsável pela investigação, o delegado Eduardo Amaral destaca que o suspeito foi levado o mais rápido possível para a realização da perícia:
— Recebemos os autos do plantão pela manhã, tomamos o conhecimento, ele foi o primeiro a ser interrogado pela equipe e logo em seguida detectamos a necessidade (da perícia) e ele foi levado daqui para o IGP, em Porto Alegre.
Perícia reforça versão de motorista
O resultado da perícia reforça a versão narrada pelo motorista - que era foragido da Justiça e está preso desde o dia dos fatos. Ao seu advogado, Alencar Coletto Sortica, ele negou que tenha disparado contra a polícia.
— Só fugi, não atirei — contou o homem ao defensor.
O foragido - que tem antecedentes por tráfico e foi enquadrado na Lei Maria da Penha por tentativa de feminicídio no início de maio — admitiu, no entanto, que furou o sinal vermelho com seu carro para não ser preso pela polícia.
Para Sortica, a perícia comprova o que seu cliente alega desde o início, de que não efetuou disparo nenhum contra os policias. O defensor ainda lembra que "não há nenhuma outra prova que indique o tiro" por parte de Luiz Carlos, como disparo em viatura ou relato das demais testemunhas.
— Ele não lavou as mãos, ficou o tempo inteiro preso, ainda estava com as mãos sujas. Nem sequer teve a possibilidade disso. O vestígio ficaria ali, sem dúvida — alega Sortica.
Luiz Carlos foi indiciado pela Polícia Civil, ainda em maio, por tentativa de homicídio contra os policias - o delegado afirma que não mudará o resultado do inquérito. Com as novas provas, o MP deve definir se mantém em sua denúncia o enquadramento pelo crime.
O promotor Fernando Bittencourt disse que a perícia vai ser analisada com as demais investigações para formar sua convicção sobre a existência de crime ou não.
— Se o exame residuográfico concluiu que não há concentração compatível nas mãos do suspeito Luís Carlos com a deflagração de tiro, a princípio ele não teria atirado. Ou, se atirou, usou luva, ou higienizou as mãos depois de atirar. Várias conclusões são possíveis, a conclusão final vai depender da análise de toda a prova (oral, documental e técnica) — reforça o promotor.
Com o exame residuográfico completo, falta ao MP apenas outra perícia, no carro onde estavam as vítimas.
Paralelo ao trabalho do Ministério Público e da Polícia Civil, a Brigada Militar também conduz uma investigação para apurar a conduta dos PMs: os soldados Regis Souza de Moura, Sandro Laureano Fernandes e o sargento Marcelo Moreira Machado. O inquérito policial militar é feito pela Corregedoria Geral, em Porto Alegre. Na terça-feira (9), o turista angolano foi ouvido pela corporação, que ainda informou que ouvirá todas as pessoas possíveis para elucidar os fatos.
Relembre o caso
- Gilberto Casta Almeida e Dorildes Laurindo foram ao litoral gaúcho usando o aplicativo Blablacar. O veículo era conduzido por Luiz Carlos Pail Júnior, foragido, que usava nome falso para dirigir pela plataforma.
- Na volta, em 17 de maio, com corrida fora do app, o motorista passou a fugir da polícia. Houve perseguição até Gravataí. Os PMs atiraram 35 vezes contra o carro, segundo a BM. Os agentes alegaram que foram recebidos a tiros.
- Luiz Carlos foi preso. Gilberto foi baleado e também detido, sob alegação de que teria ajudado a atirar contra a polícia. Ferida, Dorildes foi socorrida para um hospital em estado gravíssimo.
- Dez dias depois, em 27 de maio, a Polícia Civil conclui a investigação sobre o caso dizendo que Gilberto não tinha arma e não revidou à abordagem. A Polícia Civil ainda disse que havia indícios de que os PMs agiram com imprudência. A BM abriu uma investigação contra seus agentes.
- Em 29 de maio, após ficar 12 dias preso em Canoas, Gilberto recebe o alvará de soltura e deixa a cadeia.
- Em 2 de junho, Dorildes não resiste aos ferimentos e morre no hospital.
- Em 4 de junho, GaúchaZH revela que um dos policiais envolvidos na perseguição estava condenado à prisão por agressão a um adolescente e respondia a outros dois processos. A informação não havia sido confirmada pela BM, apesar dos questionamentos. No dia seguinte, a investigação sai do batalhão de Gravataí e passa para a Corregedoria-Geral, em Porto Alegre.
Contrapontos
Em nota, a BM informou:
"A Brigada Militar aguarda conclusão do IPM, após o conjunto de todas as provas para se manifestar".
A reportagem tenta contato com a defesa dos policiais — os três estão afastados de suas funções.