Em uma terça-feira chuvosa de julho, em desespero, Marta*, 32 anos, uma professora de Alegrete, entrou no prédio da Polícia Civil. Há três anos sufocada por uma relação violenta, buscava socorro. Mãe de dois filhos, queria registrar ocorrência contra o companheiro, que lhe espancava sempre que se embriagava. Já havia tentado terminar o relacionamento, mas ele sempre voltava e as agressões recomeçavam.
— Onde fica a Delegacia da Mulher? – indagou a um policial.
O município da Fronteira Oeste é um dos que não possuem Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) no Rio Grande do Sul. No Estado, há somente 22 unidades. Ou seja, 95,6% das cidades gaúchas não contam com o serviço. Mas este cenário não impediu que Marta fosse orientada e encorajada a se desvencilhar da relação. Naquela tarde, em uma sala colorida aos fundos da delegacia, desabafou às voluntárias da Amoras ONG. São mulheres que se uniram há dois anos para auxiliar vítimas da violência doméstica.
— Estava sofrendo demais dentro de casa. Não aguentava mais. A gente chega desnorteada e ter esse apoio é fundamental. No momento que consegui me libertar, mudei de vida — conta a mulher, que hoje tem medida protetiva e mudou de cidade.
Foi também na Amoras ONG que Sandra*, outra moradora de Alegrete, de 37 anos, encontrou forças para procurar a polícia. A mulher relata que durante uma entrevista de emprego, no início do ano passado, foi vítima de estupro.
— Foi o pior momento da minha vida. Estava em estado de choque e não queria falar. Só queria ficar isolada do mundo. Só perdi o medo de denunciar com a ONG. Vi que não estava sozinha e deveria denunciar — recorda.
Voluntários
O trabalho das Amoras se iniciou há dois anos, quando um grupo de mulheres, movido pelo inconformismo e pelo amor, decidiu unir forças. A palavra Amoras, para as mulheres, é o feminino de amor. Passaram a promover palestras em escolas e levaram a uma casa de Alegrete a exposição Nem tão doce lar, em parceria com a Fundação Luterana de Diaconia. A convite do Judiciário, passaram a conversar com mulheres após audiências de violência doméstica. Atenderam a cerca de cem vítimas por mês, por nove meses.
O marido pede desculpas, ela acredita, e volta todo o sofrimento. E ainda é culpabilizada por uma sociedade machista.
EVELISE LEONARDI
Presidente da Amoras ONG
Desde maio, a ONG está trabalhando em outra forma de atendimento às mulheres, de maneira experimental. São 12 voluntárias que se revezam na Delegacia de Polícia. Elas não acompanham o registro da ocorrência, mas orientam a vítima em sala separada e fazem elo com instituições. A Sala Amoras funciona terças e quintas-feiras, das 14h às 17h. As voluntárias entram em contato com as mulheres e convidam para ir até a delegacia.
— Às vezes a mulher não entende que está em um relacionamento abusivo. Se culpa por tudo de ruim que acontece na família. Quando toma uma atitude, se sente culpada e o ciclo da violência se repete. O marido pede desculpas, ela acredita, e volta todo o sofrimento. E ainda é culpabilizada por uma sociedade machista — diz a presidente da ONG, Evelise Leonardi.
Por meio de parceria com um centro profissionalizante, a ONG oferece cursos para fomentar a independência financeira da mulher. Em grupos de WhatsApp, recebem pedidos de informação e denúncias. Para o futuro, esperam estreitar a parceria com as instituições para que mais mulheres procurem o serviço e também suprir outra deficiência do município: implantar uma casa de acolhimento.
— Muitas vezes a mulher não tem para onde ir, se quiser sair de casa. Sei que isso caberia à organização pública, mas não podemos esperar mais. O amor é o único sentimento que pode mudar o mundo. É por esse sentimento que somos nutridas. Às vezes, entre 200 mulheres, uma vem e diz que fez diferença. Isso é um presente sem tamanho. Mostra que estamos, aos poucos, virando o jogo — diz Evelise.
*Os nomes são fictícios
Qualificação é o caminho
Para a juíza Madgéli Frantz Machado, do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar da Capital, o serviço especializado, via de regra, produz resultados mais efetivos, por ter visão de gênero, compreender o ciclo da violência e não revitimizar a mulher. Mas naqueles municípios em que não há, a magistrada defende a capacitação dos profissionais e o fortalecimento do elo entre as instituições que podem atender essa vítima.
— É importante as coisas estarem conectadas, os serviços próximos uns dos outros, para um resultado efetivo. É preciso sentar todo mundo e fazer a capacitação, organizar a rede. A maioria das cidades não tem todos os serviços, mas no mínimo um vai ter. Se o serviço for capacitado, pode ser tão efetivo quanto o especializado — afirma.
O sistema de saúde também é uma das portas de entrada da violência doméstica. Na visão da magistrada, é essencial qualificar também esses profissionais para que estejam atentos e possam orientar as mulheres.
É preciso qualificar o atendimento policial como um todo, para que essa mulher seja acolhida e atendida em qualquer delegacia que ingressar.
TATIANA BASTOS
Diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher
— Posso não ter a delegacia ali, mas vou ter um posto de saúde ou a BM. É importante todos os profissionais terem esse olhar. Uma mulher em depressão ou que tenha tentado suicídio, pode ser uma vítima de violência doméstica. Se isso não for detectado, vou perder esta mulher, seja pelo suicídio ou até um feminicídio — alerta a juíza.
Em cenário de escassez de recursos e falta de policiais, a diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher, delegada Tatiana Bastos, entende que qualificar o atendimento dos plantões é estratégia essencial. Entre as iniciativas, está a implantação da Sala das Margaridas, espaço acolhedor onde a vítima é ouvida.
— A polícia gaúcha vem investindo em capacitar policiais para que tenham interação com a rede local e conheçam os encaminhamentos — afirma Tatiana.
Outra iniciativa é a aplicação de um questionário de avaliação de risco, para identificar qual o grau de perigo a mulher vítima de violência doméstica está sujeita. O método, inicialmente implantado em Porto Alegre, está sendo aplicado nas Deams e em oito DPPAs. A polícia lançará manual padronizado de atendimento às vítimas de violência doméstica, ainda neste mês. A delegada entende que a criação de cartórios especializados e o deslocamento de um policial, integrado com a rede, para atender as mulheres também pode ajudar a superar a falta de unidade especializada.
— É preciso qualificar o atendimento policial como um todo, para que essa mulher seja acolhida e atendida em qualquer delegacia que ingressar — conclui a delegada.
– Vítimas de violência doméstica demoram a buscar o sistema de justiça, não confiam, vivem num ciclo de violência. Têm muita dificuldade de sair desse tipo de violência. O importante é não deixar de registrar. É essencial que haja articulação entre as instituições para o desenvolvimento de estratégias de prevenção e políticas que garantam fortalecimento dessas mulheres e a responsabilização dos agressores — reforça a dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado, Liliane Braga Luz Oliveira, que também defende a qualificação dos agentes.
Segundo a coordenadora da Patrulha Maria da Penha no Estado, major Karine Pires Soares Brum, a Brigada Militar também está capacitando os policiais para qualificar o atendimento às vítimas. Entre terça e quarta-feira, será realizado seminário na Capital voltado para o tema. Entre os focos, está a capacitação para preencher o formulário de avaliação de risco.
— Esse formulário está sendo aplicado pelas DEAMs. Mas onde não há uma delegacia especializada, há um policial militar. A ideia, no ano que vem, é expandir essa capacitação — afirma a oficial.
Iniciativas em comum nos projetos:
- Informar as mulheres sobre o que é violência doméstica e quais seus direitos previstos em lei
- Qualificar policiais para melhor atender as vítimas
- Ampliar debate sobre violência doméstica nos municípios
- Criar espaços para mulheres falarem sobre a violência
- Propiciar às vítimas oportunidades para aprender novas atividades e ampliar independência financeira
- Orientar agentes de saúde para identificação de possíveis casos de violência
- Aumentar integração e diálogo entre as instituições que integram a rede de proteção
- Capacitar profissionais que atendam o público feminino no dia a dia para identificar casos de violência e orientar mulheres
- Além de punir, também orientar e tratar o agressor