— Estou orgulhosa de quem sou hoje. Um dia vou ter meu grupo feminista.
O projeto de vida feito por Lenira Fideles da Silva, 54 anos, era algo impensável para a doméstica até julho de 2018. Naquele mês, em Vacaria, na Serra, foi convidada a participar de um encontro no Ministério Público (MP). Tornou-se mais uma integrante do Projeto Acolher, voltado às vítimas de violência doméstica.
O município também não tem Delegacia da Mulher´ — no Estado, há somente 22 unidades. Ou seja, 95,6% das cidades gaúchas não contam com o serviço. Mas, desde junho de 2015, Vacaria conta com a iniciativa da Promotoria, em parceria com instituições, para reduzir indicadores do delito.
Neste período, a cidade despencou 26 posições no ranking das mais violentas para mulheres no RS. Com 9,67 ocorrências para cada mil habitantes, Vacaria ocupava a 8ª posição. Em 2018, passou para a 34ª, com taxa de 7,62 para cada mil habitantes. O levantamento, que integra o Mapa Social do MP no Estado, tem como base dados de crimes como ameaça, estupro, lesão corporal e feminicídio.
— Comecei a pensar em mim, ter amor próprio. Vivia com medo. Mudou minha vida e minha maneira de pensar. Gostaria que muitas mulheres tivessem a mesma oportunidade que estou tendo — diz Lenira, que participa de palestras, oficinas e aulas de defesa pessoal.
A doméstica, mãe de seis filhos, que por mais de duas décadas enfrentou relação violenta e chegou a ter medida protetiva, conta que encontrou força e amizade nas integrantes do projeto. Agora quer auxiliar outras mulheres.
— Sempre digo: que não aceite nem a ofensa nem qualquer tipo de controle. Querer controlar a hora que tu sai e que chega, com quem conversa, as amizades. Às vezes, a gente nem percebe. Cada vez fica mais grave. Acha que é ciúme, que é normal. Não é normal. Quando vê está tão sufocada, que parece não vai sair dali — diz.
Quando esteve pela primeira vez na Promotoria, Lenira tinha o semblante triste. Escolheu naquele dia um poema da feminista indiana Rupi Kaur para representar seu recomeço: “Eu não fui embora porque eu deixei de te amar. Eu fui embora porque quanto mais eu ficava, menos eu me amava”.
— Lembro que ela era como uma flor murcha, encolhida. Agora é outra mulher e ajuda os outros — recorda a promotora de Justiça Bianca Acioly de Araújo.
Quando começou a trabalhar com violência doméstica, há cinco anos, a promotora se inquietava com o pouco tempo que tinha para ouvir as vítimas. As mulheres queriam falar sobre a relação, choravam, confusas com a situação. Do outro lado, Bianca dispunha de minutos para o atendimento e precisava atropelar os relatos.
— Na minha frente tinha uma mulher que demorou tempo para criar coragem, sair desse ciclo. Ela queria contar, despejar todos os problemas. É comum a mulher ter discurso confuso porque a violência se repete. Eu precisava interromper. Era muito angustiante — conta Bianca.
Em busca de ideias para propiciar um espaço no qual essas mulheres pudessem falar, a promotora encontrou uma iniciativa desenvolvida pelo MP de São Paulo. Inspirado pela ideia, foi implantado o projeto, de mesmo nome, Acolher, em Vacaria. Sempre que um processo de violência doméstica chega à Promotoria, a mulher é chamada para participar de um encontro, onde pode esclarecer dúvidas, entender seus direitos e desabafar.
— O que acontece aqui no encontro não tem a ver com o processo. O que importa é conseguir falar — explica Bianca.
O mais difícil ainda é a mulher entender que está sofrendo violência. É dizer: “sou vítima”. A primeira coisa que ela diz é: “ele nunca me bateu”. Por isso, a necessidade de quebrar o silêncio.
BIANCA ACIOLY DE ARAÚJO
Promotora de Justiça
Ainda dentro do projeto, foi realizado um mapeamento dos casos de violência contra mulher registrados no município para entender, por exemplo, em quais bairros era necessário desenvolver mais atividades de prevenção em escolas e empresas. Os processos passaram a ser etiquetados de forma separada. Uma campanha com depoimentos de vítimas em cartazes foi lançada no município. O Acolher evoluiu para as oficinas, que permitem às mulheres aprender novas atividades e também obter renda extra. O projeto conta ainda com grupo reflexivo para agressores.
— Não adianta empoderar a vítima e mandar de volta para casa. Precisamos atingir esse outro público. Vacaria é uma cidade onde o homem tem necessidade de provar a masculinidade, onde essa relação de patriarcado se mantém. Falar sobre violência é difícil. O nosso trabalho é sensibilizar e falar sobre o assunto. Ainda estamos em uma posição ruim, mas já conseguimos avançar bastante. Isso nos traz muito orgulho — afirma a promotora.
Para unir a rede do município, são realizadas reuniões mensais entre as instituições para discutir casos e estratégias. Em casos urgentes, por exemplo, a Patrulha Maria da Penha faz contato direto com a promotora. O tema é abordado com frequência também nas rádios locais e em perfis do projeto nas redes sociais. Para o futuro, a promotora projeta ampliar a parceria com outros públicos, como os profissionais da área da saúde.
— O mais difícil ainda é a mulher entender que está sofrendo violência. É dizer: “sou vítima”. A primeira coisa que ela diz é: “ele nunca me bateu”. Por isso, a necessidade de quebrar o silêncio. De falar cada vez mais. Para que as próprias mulheres reconheçam que são vítimas e que têm onde buscar ajuda — diz Bianca.
Na Região Central, foco na área rural
Em São Vicente do Sul, município de 8 mil habitantes na Região Central, o projeto Juntas Somos Mais Fortes, desenvolvido pelo Judiciário há dois anos, tem como alvo prioritário as mulheres da zona rural. O juiz Thiago Tristão Lima percebeu que as vítimas chegavam às audiências repletas de dúvidas:
— Essas mulheres, normalmente trabalham na lida do campo e cuidam da casa, muitas vezes submetidas a violências que nem sabem que são vítimas. O homem ameaça: “se sair daqui não vai levar nada, eu vou ficar com os filhos”. Esse tipo de coisa que acaba deixando a mulher estigmatizada.
As mulheres relatavam, por exemplo, nas audiências que os maridos impediam até que se embelezassem para ir às festas da comunidade. E não conseguiam se enxergar vítimas de violência.
— Achavam que era assim mesmo, que sempre foi assim. Muitas entendem como demonstração de afeto — diz o juiz.
Essas mulheres, normalmente trabalham na lida do campo e cuidam da casa, muitas vezes submetidas a violências que nem sabem que são vítimas. O homem ameaça: “se sair daqui não vai levar nada, eu vou ficar com os filhos”. Esse tipo de coisa que acaba deixando a mulher estigmatizada.
Um evento, com auxílio de voluntários, instituições públicas e privadas, foi criado no município para reunir as mulheres. É realizado a cada seis meses no salão paroquial da comunidade. Um ônibus é disponibilizado para o deslocamento das participantes.
O encontro tem três focos: informar mulheres sobre violência doméstica e a rede de atendimento, inclusive da área de saúde, incentivar a valorização da mulher, com espaço para embelezamento, e o eixo lúdico, onde é apresentada uma peça teatral sobre o tema.
— É um turno com almoço coletivo, para que elas possam voltar para suas atividades. Tem de ser algo sintético e com máximo de informação possível, de maneira leve. A intenção é que mostrar que elas não estão sozinhas — afirma Lima.
Aliado a isso, o juiz passou a dar mais celeridade aos processos de violência doméstica na comunidade. Durante a audiência de acolhimento, a vítima é ouvida e na sequência o agressor, em momentos separados.
— Explico que essa violência não vai estagnar no núcleo familiar dela, vai ser passada para os filhos. Seja as filhas sendo submetidas e esse tipo de relacionamento ou os homens que repetem o comportamento. Cito ao réu as consequências dos seus atos, inclusive a possibilidade de prisão — afirma o magistrado.
A meta agora é implantar o projeto também na área urbana, com a capacitação de mulheres que têm atividades voltadas ao público feminino, como manicures, cabeleireiras, massagistas. Elas estão sendo convidadas a comparecer ao Fórum para receberem informações sobre a Lei Maria da Penha e depois repassarem às clientes.
— São ambientes em que, via de regra, há muita confidencialidade. Assuntos que no dia a dia não se comenta. Chamar essas profissionais e explicar para elas, como podem ser agentes transformadoras na vida dessa mulheres é essencial — projeta.
Iniciativas em comum nos projetos:
- Informar as mulheres sobre o que é violência doméstica e quais seus direitos previstos em lei
- Qualificar policiais para melhor atender as vítimas
- Ampliar debate sobre violência doméstica nos municípios
- Criar espaços para mulheres falarem sobre a violência
- Propiciar às vítimas oportunidades para aprender novas atividades e ampliar independência financeira
- Orientar agentes de saúde para identificação de possíveis casos de violência
- Aumentar integração e diálogo entre as instituições que integram a rede de proteção
- Capacitar profissionais que atendam o público feminino no dia a dia para identificar casos de violência e orientar mulheres
- Além de punir, também orientar e tratar o agressor