Ao entardecer de uma quarta-feira, cinco homens aguardam nos corredores do Fórum Central em Porto Alegre, sentados. São integrantes de um grupo reflexivo para agressores. Entre eles, há jovens. Um arrasta os pés até a sala, pouco disposto. Sentam-se em círculo. O sexto chega e cumprimenta os demais, animado. Alguns reclamam de cansaço, de precisar correr entre a saída do trabalho e a chegada ao encontro.
Nos próximos minutos, enquanto dois psicólogos voluntários explicam como será a atividade ao longo de duas horas, outros vão chegando. Alguns ingressam tímidos, em silêncio. Também há os mais empolgados e barulhentos. O facilitador explica que a justiça restaurativa tem, entre as premissas, acreditar que as pessoas têm potencial para serem recuperados. É o que será colocado em prática ali, em um total de 12 encontros a serem frequentados por cada homem.
Nas reuniões, o método é sempre diferente. Nesta, acompanhada por ZH, será o círculo restaurativo, que possibilita a todos serem ouvidos. Um jacaré de pelúcia circula de mão e em mão. A ideia é que somente aquele que segura o brinquedo possa falar. Nem sempre é assim, mas a fórmula vai funcionando aos poucos. O grupo aumenta. Já são nove na sala. Dois deles, visivelmente contrariados, recusam-se a falar.
— Na frente do juiz, a gente não pode falar — reclama um rapaz.
No meio do círculo, papéis recortados trazem palavras como paz, verdade, honestidade, respeito e esperança. Cada um é convidado a escolher um sentimento e a falar sobre ele. A roda de cadeiras pretas já reúne 11 participantes, quando os relatos se aprofundam. Alguns se calam, enquanto outros aproveitam o momento para uma espécie de desabafo. Os participantes são instigados a discorrer sobre dor e sofrimento.
A maioria dos homens reclama da falta de espaço para falar. Entende que a lei veio para beneficiar somente as mulheres. É uma oportunidade de eles refletirem e se enxergarem no outro.
MADGÉLI FRANTZ MACHADO
Juíza
— Dor são os dias que estou sem ver meu filho. Perdi tudo — diz um.
— Senti isso quando caí no (Presídio) Central — afirma outro.
Os diálogos se intercalam, mas é notável que, ao longo das atividades, parte dos homens fica mais à vontade para falar. Na maioria das histórias, veem-se injustiçados. Não se enxergam como agressores.
— Durmo e acordo chorando. Não acredito no ponto a que chegou a minha vida.
— Vai melhorar, se Deus quiser — conforta outro.
Ao longo das conversas, são instigados a pensar sobre as relações e sobre a forma de lidar com o outro. Admitem que os relacionamentos tinham problemas, que faltava diálogo. Ensinar a ouvir e saber agir por meio de outra linguagem, que não a violência verbal ou física, é um dos objetivos do grupo. Para isso, são trabalhados temas como questões de gênero, tipos e ciclo da violência e controle de impulsos. A intenção é que eles reflitam sobre os atos. Uma tarefa complexa.
— Minha mágoa é ter errado e agora estar sofrendo — reconhece um jovem, ao fim do encontro.
Desde 2011, grupos reflexivos de gênero auxiliam e empoderam mulheres vítimas e tentam conscientizar os homens. A maioria deles chega ao local após indicação do juiz, junto ao despacho da medida protetiva às mulheres. Raros procuram o grupo por conta própria: dos 543 atendidos nos seis primeiros anos, só cinco buscaram o serviço voluntariamente. Mas apenas 13 dos que passaram pelo ciclo tiveram novo episódio de violência doméstica registrado.
— Os números mostram que esses grupos são eficazes. A maioria dos homens reclama da falta de espaço para falar. Entende que a lei veio para beneficiar somente as mulheres. É uma oportunidade de eles refletirem e se enxergarem no outro — explica a juíza Madgéli Frantz Machado, do 1º Juizado de Violência Doméstica.
Na sala da magistrada, uma pintura colorida com a imagem da artista mexicana Frida Kahlo descansa sobre a mesa da A sala está repleta de borboletas em desenhos e artesanato. É uma alusão aos projetos que vêm sendo desenvolvidos no Juizado.
Um deles, Borboleta Lilás, lançado em agosto em parceria com a 1ª Vara do Júri, busca dar visibilidade para os casos de feminicídios que chegam ao Tribunal do Júri. A intenção é acolher e encaminhar para a rede de atendimento as sobreviventes e trabalhar com os agressores. Um primeiro socorro psicológico também é prestado aos familiares, incluindo os filhos.
Madgéli acredita que a construção histórica e cultural que recebemos faz com que certas condutas violentas se tornem invisíveis. Já ouviu relatos de homens que, na tentativa de se defenderem, argumentavam: "Eu nem fiz sangue, não cortei, não machuquei".
— Ele dá um empurrão, fala alto, repreende, mas não reconhece como conduta violenta. Acha que ela tem de obrigatoriamente contar todos os detalhes, que horas vai sair, com quem está, não pode sair com amigos porque é casada ou tem namorado - exemplifica.
Para a juíza, há uma forma de controle que faz parte das relações e, sem reflexão, o modelo é internalizado e reproduzido. Todos os dias, nas audiências, acompanha relatos de homens que acreditam que a mulher tem obrigação, por exemplo, de mostrar o celular ao parceiro.
— Se veem uma mensagem, uma postagem, uma foto de um ator, que ela nunca vai encontrar na vida, já é motivo para violência — relata.
A falta de percepção de que alguns comportamentos são violências é um dos aspectos considerados pela psicóloga Ivete Vargas como desafiantes. Ela percebe isso também nos relatos das mulheres que acompanha nos grupos reflexivos para vítimas.
Acham que a violência é só aquela em que a mulher chega sangrando, cortada, esfaqueada, cheia de curativos. Não é. A mulher chega aqui com várias violências.
IVETE VARGAS
Psicóloga
— Quando vai buscar ajuda, muitas vezes, a mulher não recebe apoio. Para o meio familiar e amigos, esse homem é um cara bom. É difícil até para ele enxergar que não pode fazer isso. Que não é dono dela e precisa mudar suas atitudes. Acham que a violência é só aquela em que a mulher chega sangrando, cortada, esfaqueada, cheia de curativos. Não é. A mulher chega aqui com várias violências — afirma.
O grupo de acolhimento para as mulheres serve de ponte para ouvir outras histórias e encontrar apoio, como forma de fortalecer as vítimas e evitar que se sintam sozinhas ou culpadas pelo que passaram. Em comum, carregam o sentimento de descrédito. Outro aspecto preocupante é o adoecimento das vítimas, que acabam recorrendo aos antidepressivos.
— Essa falta de apoio faz com que elas se recolham e fiquem mais fechadas. Algumas entram em depressão. É por que elas são deprimidas que sofrem violência? Não, elas sofrem violência e todo esse desamparo, com a naturalização da violência: é isso que faz com que elas adoeçam. A violência adoece. Algumas mulheres tentam suicídio — explica a psicóloga.
Em Ijuí, a promotora Cristiane Barin foi responsável por ajudar a unir a rede de apoio e pela criação de projetos com foco na violência doméstica. Um deles, o Sala de Espera: Informar para Prevenir, há seis anos em atividade, foi formado para amparar as mulheres vítimas de violência e os autores com informações sobre direitos, políticas públicas, além de como identificar a violência, quais os tipos e como se constitui todo esse ciclo.
— Não adianta só querer que a mulher represente, queira a punição. Precisamos parar de estereotipar as mulheres, entender as causas pelas quais muitas vezes retornam para o relacionamento nocivo. E, mesmo que ele se separe, temos de trabalhar para que ele não volte a agredir outra –argumenta a promotora.
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