No início da madrugada de 5 de junho de 2017, criminosos mascarados e armados com pistolas saltaram em direção à porta da cabine de um caminhão. O veículo se preparava para entrar pelos fundos de um depósito na Avenida França, no bairro Navegantes, zona norte de Porto Alegre. "Perdeu, perdeu" gritava um dos assaltantes, com a arma apontada para o motorista. O bando esperava usar o condutor como refém para conseguir entrar no prédio. Um vigilante percebeu a ação e trancou o portão rapidamente.
Com a tentativa frustrada, os assaltantes arrombaram o acesso com um pé de cabra. Nem quiseram saber o que era transportado no caminhão. Andaram 50 metros em direção ao depósito. Sabiam o alvo: uma carga de 2,7 mil celulares. Era o primeiro da série de assaltos milionários com esse mesmo objetivo. Desde lá, nove ataques foram registrados: oito na zona norte de Porto Alegre e um no Distrito Industrial de Cachoeirinha.
Com armamento pesado e táticas ousadas, que incluem o conhecimento de detalhes da rotina dos alvos, ladrões roubaram neste período, pelo menos R$ 12,3 milhões em aparelhos — o valor de três casos não é contabilizado porque não foi informado à polícia pela empresa atacada. Foram levados 19,4 mil telefones nos nove assaltos. Para a Polícia Civil, trata-se de uma organização criminosa que mantém o mesmo núcleo e alterna integrantes em cada ataque aos depósitos de lojas e transportadoras.
— Existe um núcleo, onde acabam trocando informações para atuar. Mudam a mão de obra para cada ação. A investigação tenta não se limitar aos executores, mas alcançar também quem faz o trabalho intelectual da ação. E tenta pegar ainda o revendedor, mesmo que pequeno, para tentar atingir a pessoa que recepta aqueles celulares porque é quem fomenta esse tipo de roubo — afirma o delegado Sander Cajal, diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic).
A forma de atuação da quadrilha levou a polícia a concluir que os criminosos fazem uso de informações privilegiadas. Por meio de ameaças e aliciamentos, acabam por ter acesso aos detalhes. Nos ataques, os bandidos demonstravam saber não apenas o número de vigilantes, mas o tipo de arma usada e até os horários de troca de guarda. Também conheciam detalhes da rotina do sistema de segurança, como o momento em que a carga é armazenada, o local exato onde são guardadas, o valor e a quantidade de produto armazenado.
A investigação tenta não se limitar aos executores, mas alcançar também quem faz o trabalho intelectual da ação.
— Eles fazem ameaças, demonstram conhecer as vítimas. Sabem detalhes, nomes de familiares, por exemplo. Isso deixa as pessoas com medo — explica o delegado Alexandre Fleck, titular da Delegacia de Repressão ao Roubo e Furto de Cargas do Deic.
Mantendo as vítimas sob ameaças, os criminosos normalmente não deparam com tentativas de reação. Somente em um caso o vigilante do local que era alvo acabou sendo baleado. Quando deixavam o depósito da Latam, naquele primeiro ataque, os ladrões atiraram na direção do segurança, que havia se aproximado para verificar o que acontecia, após um cachorro latir. Tentou se esconder, mas foi atingido de raspão no braço.
Se não rastrearmos a carga nas primeiras 12 horas, é quase impossível recuperá-la inteira. É muito rápido.
O planejamento e uso de informações antecipadas permite que o ataque rápido marque a ação desses criminosos. Permanecem no máximo 15 minutos dentro dos depósitos. Para agilizar o roubo, obrigam os funcionários a auxiliar no carregamento dos aparelhos para dentro dos veículos. Da mesma forma, o escoamento do produto também é ágil.
— Se não rastrearmos a carga nas primeiras 12 horas, é quase impossível recuperá-la inteira. É muito rápido — explica Fleck.
O conhecimento das informações privilegiadas leva a polícia a investigar como os assaltantes descortinam a rotina das empresas. No ataque mais recente, em fevereiro, é investigado o envolvimento do funcionário de uma transportadora. Durante mandado de busca na residência dele, foi apreendido um celular levado no roubo. Ele foi preso por receptação mas logo foi solto. No inquérito, ainda em andamento, segue investigado por assalto. Outro membro da transportadora também é alvo de apuração. A polícia suspeita que eles possam ter colaborado com os criminosos, para permitir acesso ao depósito.
Horas após o último ataque, no depósito da Latam, no aeroporto Salgado Filho, uma mulher foi presa em casa, no bairro Rubem Berta, com 318 aparelhos roubados. No roubo foram levados 3 mil celulares, estimados em R$ 2 milhões. Um dos motivos que torna o smartphone alvo da organização é justamente alto valor. Os aparelhos são comercializados no mercado ilegal pela metade do preço. A carga também é fácil de transportar pelo tamanho. É um tipo de mercadoria que não precisa ser carregada em veículos de grande porte.
Até o momento, nove inquéritos por roubos foram abertos e foram identificados 35 envolvidos. Foram 17 presos pelos assaltos e outros 17 por receptação. Um deles morreu em janeiro, enquanto tentava escapar da polícia. Em um sítio, em Gravataí, policiais encontraram parte dos smartphones roubados na madrugada anterior, em Cachoeirinha, além de armas e coletes. Parte do bando tentou escapar pela RS-030, um deles rendeu um motorista, roubou seu veículo e fugiu. Ele foi morto durante a perseguição. Com quatro investigações ainda em andamento, 26 pessoas já foram indiciados por roubo.
A revenda é rápida e, muitas vezes, combinada anteriormente. Um dos desafios da polícia é comprovar que os criminosos são mais do que receptadores, cuja pena varia, em caso de condenação, de 1 a 8 anos de prisão, mas também responsáveis pelos roubos, com penas superiores a 10 anos de reclusão.
O quebra-cabeça da investigação
Os policiais têm trabalhado em busca de provas que todos os investigados possuem conexões. Um quebra-cabeça montado pela Delegacia de Repressão ao Roubo e Furto de Cargas aponta que os assaltantes são os mesmos em vários casos, porém alternam parte dos integrantes. Um dos indícios é o fato de que, durante as prisões, alguns dos detidos por um roubo estavam com materiais levados nos outros assaltos.
Um suspeito preso pelo envolvimento no segundo assalto à Latam tinha, em sua casa, celulares roubados da transportadora Fedex, em 2018, e várias caixas de aparelhos levados da Multisom, também no ano passado. Indiciados no roubo à Fedex, na Capital, em abril do ano passado, por exemplo, foram identificados no primeiro ataque à Latam.
Mas antes mesmo dos roubos de celulares em depósitos, vários destes criminosos foram parceiros em outros tipos de ocorrências na primeira metade desta década, principalmente no tráfico de drogas, no roubo a banco e de cargas em caminhões.
— Dois suspeitos pelo ataque na Latam já foram presos em 2017 após tentativa de roubo de carga e troca de tiros com a Brigada Militar. Dois indiciados pelo roubo na Fedex também roubavam junto em 2016 "cargas em movimento" — explica Fleck.
Embora a polícia afirme que não há uma hierarquia definida no grupo, sabe-se que parte desses criminosos seria mentora do ataque. São eles que reúnem os outros integrantes da quadrilha para a ação e definem como será realizada. Apresentam, inclusive, patrimônio superior ao dos demais, o que indica que permanecem com parte maior dos lucros.
O bando é formado por assaltantes, com antecedentes por crime como roubo de cargas, ataques a estabelecimentos comerciais e roubo de veículos. Ao longo da investigação, a polícia também apurou o elo com o tráfico de drogas, sendo a maioria dos presos envolvidos com uma facção de Porto Alegre.
Além do histórico, os veículos usados nos roubos também indicam que o grupo é interligado. Um carro usado pelos ladrões no assalto em janeiro deste ano na Via Varejo, em Cachoeirinha, também seria o mesmo da ocorrência da Latam, em fevereiro. Neste último caso, a transportadora que teve um funcionário preso por envolvimento no crime é a mesma que prestava serviço para a Multisom durante ataque em novembro do ano passado. A polícia apura se outros empregados desta empresa, que está tendo o nome mantido em sigilo até o momento, estariam envolvidos nos dois ataques.
Fleck diz que há indícios de que os mesmos integrantes agiram nos casos da Fedex, no ano passado, e em um da Claro, todos com utilização de caminhão para derrubar portões. O delegado também acredita que foram os mesmos que atacaram os depósitos da Latam, este ano, na Multisom, em 2018, e em um dos casos na Claro, em 2017. Todos estes fatos tiveram vítimas ligadas às empresas mantidas em cárcere privado nas próprias casas durante os ataques.
Combate às organizações criminosas
A chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflor, afirma que a investigação das organizações criminosas, como a responsável pelos ataques aos depósitos de celulares, está entre as prioridades do órgão. Ela cita como exemplo do resultado do trabalho de investigação a operação realizada no fim de abril, para prender envolvidos no assalto ao centro de distribuição da Latam, no aeroporto Salgado Filho, e a prisão de oito suspeitos do ataque ao depósito da Via Varejo, em janeiro:
— As operações desencadeadas através dessas investigações demonstram que nós temos nos especializado cada vez mais nesse tipo de combate, que busca, de uma forma ou de outra, desmantelar essas quadrilhas, essas associações criminosas, que existem por trás dessas ações — diz.
A delegada ressalta ainda a importância do combate aos crimes patrimoniais, com emprego de violência, especialmente por conta do risco às vítimas:
— Temos fomentado grandes operações e também pequenas investigações, que acontecem nos municípios com foco no combate ao roubo a pedestre, ao roubo de veículo, a estabelecimentos comerciais. O crime patrimonial com emprego de arma e fogo e violência tem que ser prioridade. Qualquer roubo é um possível latrocínio (quando há morte). Então, por isso a nossa preocupação maior nesse sentido.