O sujeito começa a namorar e não desgruda mais. Tem medo que a parceira o troque por outro e passa a fazer exercício físico de forma compulsiva, para ficar esbelto. Submete-se a uma plástica para que ela o ache mais bonito. No restaurante, a namorada elogia o ator de algum filme, e ele faz um escândalo, porque se sente diminuído e rejeitado. Ela desvia o olhar e ele já interpreta que é para admirar outro homem. No carro, explode quando a mulher parece prestar atenção na foto de alguém em um outdoor. Fica agressivo, abre a porta e ameaça se jogar. As brigas acontecem por qualquer coisa e se tornam desproporcionais.
À primeira vista, pode-se pensar que se trata apenas de alguém exageradamente ciumento. Mas quando ele chega em casa, sente-se tão mal que faz cortes no próprio corpo. Gasta todo o dinheiro em presentes, para que a namorada não o abandone. Bebe demais, usa drogas, dirige perigosamente. Ameaça se matar.
Uma investigação mais apurada pode revelar que essa não é apenas uma pessoa desagradável, exagerada e agressiva, mas sim uma vítima de um grave mal psiquiátrico, o transtorno borderline. Traduzindo para o português, ele é um paciente "limítrofe" ou "fronteiriço", por apresentar sintomas que se situam na borda entre as neuroses e as psicoses. É um mal que atinge 1,6% da população adulta, responde por 10% dos pacientes psiquiátricos ambulatoriais e motiva nada menos do que 20% das internações. Cerca de 10% dessas pessoas concretizam o suicídio, índice 50 vezes maior do que entre a população em geral.
A doença é classificada como um transtorno da personalidade, categoria que inclui também esquizoides, paranoides e antissociais. Isso significa que a enfermidade está relacionada à própria constituição da pessoa, àquilo que se considera que ela é.
O conceito de personalidade, em psiquiatria, refere-se a padrões de comportamento, pensamento e sentimento estáveis, duradouros, repetitivos e generalizados, com início na adolescência ou começo da idade adulta, que uma pessoa passa a apresentar ao longo da vida.
— Pode-se dizer que traduz "o jeito de ser" da pessoa, a "assinatura pessoal" pela qual ela passa a ser conhecida. Traços de personalidade expansivos, tímidos, isolados, desconfiados, obsessivos, dramáticos, narcisistas, antissociais, dependentes, entre outros. A predominância de um ou mais desses de traços contribui para definir as características pessoais de cada um e, em si mesmos, não constituem patologia. Mas quando tais traços se intensificam ou se distorcem de forma a causar sofrimento emocional significativo para a pessoa ou a afetar seriamente sua vida pessoal, profissional ou familiar, passam a ser chamados de transtornos de personalidade — explica o psiquiatra Sidnei Schestatsky, professor titular de psiquiatria da UFRGS.
Impulsos fora de controle
Entre as características básicas de um paciente com transtorno borderline estão a dificuldade de controlar impulsos e a de modular emoções. Como resultado disso, ele desenvolve relacionamentos tremendamente tumultuados.
— Para resumir, é uma doença das relações. O paciente tem uma relação muito conturbada com as pessoas, na qual está sempre em jogo, para ele, ser aceito ou rejeitado. Ser aceito traz muito prazer, e a pessoa faz um esforço além da média para isso, enquanto a rejeição causa um grande sofrimento. Mas a gente não vai se basear só na relação para o diagnóstico, vai ver outras coisas também, como a impulsividade, que é praticar um ato sem passar pelo processo de pensamento, ou a instabilidade afetiva, como se irritar desproporcionalmente com as situações e expressar essa irritação de forma exagerada, chutando cadeira, se machucando, fazendo ameaça de suicídio — observa Erlei Sassi Junior, coordenador do Ambulatório Integrado de Transtorno de Personalidade e do Impulso do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo.
O paciente tem uma relação muito conturbada com as pessoas, na qual está sempre em jogo, para ele, ser aceito ou rejeitado. Ser aceito traz muito prazer, e a pessoa faz um esforço além da média para isso, enquanto a rejeição causa um grande sofrimento.
ERLEI SASSI JUNIOR
Coordenador do Ambulatório Integrado de Transtorno de Personalidade e do Impulso do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo
O transtorno borderline é uma doença considerada de difícil tratamento por muitos especialistas da área. Sassi Junior afirma que, com frequência, há mesmo uma concepção de que personalidade não se trata – e como a doença é um transtorno da personalidade, não ofereceria perspectivas de mudança. O profissional da USP afirma que essa concepção está errada e que, nos dias de hoje, é possível fazer muito pelos pacientes – a ponto de, com o passar do tempo, eles deixarem de preencher os critérios para a doença:
— Achava-se que personalidade não mudava, mas hoje sabemos que ela é dinâmica. É o ajuntamento do temperamento, algo do caráter, que se altera conforme as coisas que o indivíduo aprende e vivencia. A personalidade não é estática e pode mudar conforme o tempo. É importante desmistificar, tirar essa ideia de intratabilidade. A gente deve dizer para as pessoas que elas podem procurar um serviço de saúde, que o tratamento é simples e que tudo vai terminar bem. Aos poucos, com o passar do tempo, vão melhorar muito. Vale a pena se tratar. Essa é a realidade.
Não é bipolaridade
Um complicador para o tratamento de pacientes com transtorno borderline é que a doença costuma ser confundida com o transtorno de humor bipolar. Isso acontece, segundo o psiquiatra Sidnei Schestatsky, pela existência de sintomas em comum em duas áreas, a do descontrole de impulsos e a da desregulação afetiva. O especialista afirma que existem alguns sinais aos quais os profissionais devem estar atentos, de forma a realizar o diagnóstico correto.
— Há pelo menos dois sintomas que fazem suspeitar da presença da patologia borderline: as automutilações, que estão presentes em até 80% dos casos, e as tentativas repetidas de suicídio — diz.
A natureza das duas doenças é bastante distinta, ressalta o psiquiatra Erlei Sassi Júnior. O transtorno bipolar se caracteriza por variações no humor. Em determinado período, o doente está exaltado, acredita tão firmemente que vai ganhar na loteria que aparece em casa com um carro novo, apesar de estar afundando em dívidas. Depois essa fase passa, e ele mergulha na depressão. No caso dos pacientes borderline, tais oscilações não estão presentes.
— O borderline não está restrito a episódios em que a pessoa funciona de determinado jeito. É algo duradouro, que não varia com os contextos. É uma forma de perceber, sentir e se relacionar — explica.
A psiquiatra clínica e psicoterapeuta Adriana Denise Dal Pizol considera fundamental identificar bem de que transtorno se trata, porque os tratamentos são diferentes. Além de medicamentos, como antidepressivos e estabilizadores de humor, também usados por bipolares, o paciente borderline necessita de uma abordagem mais ampla, psicoterápica, voltada especificamente para as peculiaridades da doença e para a transformação do funcionamento da pessoa.
— A medicação contém alguns sintomas, diminui a impulsividade e a agressividade, mas por si só não faz o transtorno regredir. Precisa de uma abordagem psicoterápica, e em geral esses acompanhamentos são bem longos — observa Adriana.
A psiquiatra sublinha ainda que um diagnóstico acertado, realizado precocemente, representa uma chance maior de prevenir perdas e danos. Quanto antes ele ocorrer, menos o paciente estará sob risco de se expor a perigo, abusar de substâncias, ter comportamento promíscuo ou tirar a própria vida.
Viciados no outro
O psicanalista Marcelo Soares da Cruz acaba de concluir uma tese de doutorado, apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), em que identifica na relação dos pacientes borderline com outras pessoas um mecanismo similar ao do vício – como o de drogas ou do jogo, por exemplo. Ele acredita que reconhecer essa proximidade pode abrir perspectivas para o tratamento dos doentes.
Cruz afirma que a motivação para sua pesquisa foi a incompreensão que os borderline sofrem, inclusive nos serviços de saúde mental. Ele estudou pacientes que tinham o transtorno e concluiu que um aspecto fundamental da patologia é experiência de dependência profunda em relação ao outro:
— É muito comum que pacientes com o diagnóstico de borderline tenham dependência de drogas ou outros vícios, como jogo ou sexo. O que talvez exista de mais original nesse caminho do doutorado é destacar essa dependência também nos moldes de um vício ao outro, que não é tomado exatamente como uma pessoa.
Conforme exemplifica Cruz, quem não tem o transtorno se relaciona com o namorado ou com os amigos por ver neles coisas em comum, porque se interessa por alguns de seus traços. Enquanto isso, a busca desesperada do outro pelo borderline às vezes até desconsidera quem é esse outro.
— Ele transforma alguém em tábua de salvação, e no fim das contas não importa quem esse alguém é. O borderline precisa de alguém para se salvar. Se salvar de quê? De uma experiência de desestruturação emocional. Isso ocorre também na dependência de drogas e nas outras adições. É uma tentativa precária de cura de estados emocionais muito graves — avalia o psicanalista.
Em alguns casos, o borderline encontra um par complementar, que corresponde à sua dependência. Mas o mais frequente é que, como se trata de uma personalidade muito turbulenta, que faz exigências impossíveis e requer atenção integral, as relações tenham uma tendência a ser destruídas. Conseguir manter um relacionamento, afirma Cruz, é improvável. Ao mesmo tempo, a experiência fundamental do paciente com essa configuração emocional é a angústia pela perda do objeto.
— Se o outro falha, se ele some, o borderline fica em risco de desabar também. É um sofrimento muito importante, porque ele sente que pode se desagregar emocionalmente a cada momento — descreve o psicanalista.
Como parte da pesquisa de doutorado, Cruz estudou três pacientes. Dois deles também apresentavam uma dependência importante de drogas. O terceiro, uma jovem casada, tinha um comportamento aditivo ao sexo. Procurava parceiros diariamente, não pelo prazer sexual, mas para se sentir reconhecida por algum outro.
Segundo o psicanalista, a pesquisa mostra que, apesar do componente destrutivo presente nesses pacientes, há também um elemento de esperança.
— O movimento original, a tentativa bruta de encontrar o outro, não busca a destruição. Busca a restauração de aspectos que foram muito mal construídos na personalidade dessas pessoas. Para a psicanálise acontecer para esses pacientes, não pode ser clássica, como na caricatura do psicanalista em silêncio. Além disso, o meu trabalho talvez ajude a humanizar atos que são muito incompreensíveis para quem está de fora, a traduzir comportamentos com os quais é difícil empatizar. Se uma pessoa importante na vida do paciente tem essa compreensão do que ele está passando, isso já provoca um reposicionamento — defende Cruz.
Mentes difíceis de alcançar
O tratamento do transtorno borderline é um processo longo, de melhoras graduais, que exige uma combinação de medicação com psicoterapia e frequentemente envolve também uma atenção especial às pessoas que convivem com o paciente.
Os medicamentos utilizados não são específicos para o mal. Consistem basicamente em antidepressivos e estabilizadores de humor, que ajudam a colocar um freio nos sintomas. No caso da psicoterapia, há técnicas que foram desenvolvidas para lidar com as peculiaridades do transtorno, como a terapia comportamental dialética, derivada da terapia cognitivo-comportamental.
— Essa terapia é voltada a ajudar na tolerância ao abandono. É para lidar com coisas importantes para os bordelines, como a automutilação e a ideação suicida — diz a médica psiquiatra Luísa Weber Bisol.
A principal dificuldade no tratamento dos pacientes, observa Sidnei Schestatsky, é "lidar com os sentimentos intensos e desconfortáveis que eles costumam gerar nos profissionais que os atendem". São pessoas que frequentemente descumprem combinações e colocam o terapeuta em xeque. Erlei Sassi Junior define os borderline justamente como "pacientes de difícil acesso", porque o aspecto mais complicado é acessar o mundo mental deles, que é muito protegido.
— O que se faz para acessar esse paciente é conversa, é o vinculo que o terapeuta faz com ele. Às vezes são necessárias várias sessões por semana, porque uma só não dá conta. O que faz diferença é a pessoa perceber que tem alguma coisa errada com ela. Quando uma paciente vem e diz "não tem homem para mim nesse mundo, eles são um bando de cafajestes que só querem olhar para as outras", já sei que é mais difícil de tratar do que aquele que diz: "Quando estou namorando, começo a ficar esquisita, começo a achar que as pessoas vão me trair a qualquer momento, começo a perceber que não tenho tanto valor quanto eu achava, começo a achar as outras mulheres mais bonitas do que eu". Essa paciente tem muito mais chances, porque não acha que o problema está no outro — explica Sassi Júnior.
Familiares também precisam de ajuda
Como as relações dos borderline com os familiares costumam ser tempestuosas, pelas próprias características da doença, também pode ser indicado um apoio profissional às pessoas do seu entorno. Por pior que seja o convívio, é importante que a família compreenda que o comportamento agressivo, desproporcional e destrutivo não é algo feito de propósito – ou a tendência, observa Luísa Weber Bisol, é que também respondam com agressividade, em lugar de desenvolver estratégia para lidar melhor com a situação e mediar conflitos.
Segundo Adriana Denise Dal Pizol, é importante que os familiares tenham conhecimento dos meandros da doença para mudar a atitude hostil e servir de suporte no tratamento.
— É muito difícil de conviver, porque as reações são muito intensas, têm um tom de agressividade forte. A família deve usar de muita clareza, ter referenciais bem estabelecidos, combinações, limites. Os borderlines são pessoas que precisam muito de limites e referências. Os familiares devem ter uma presença grande, supervisionando, ajudando esses pacientes a falar sobre seus sentimentos. Desse jeito, podem evitar uma situação mais trágica — recomenda.
Conheça mais sobre o transtorno borderline
Sintomas
A edição mais recente do manual de classificação diagnóstica (DSM 5) indica que há necessidade de presença de pelo menos cinco dos sintomas e comportamentos abaixo, para que ocorra o diagnóstico de borderline:
- Manifestações desesperadas frente a quaisquer experiências de abandono, reais ou imaginárias
- Relações interpessoais instáveis e intensas, alternando entre extremos de idealização (quando gratificado) e desvalorização (quando contrariado)
- Perturbações na identidade, no sentimento de si mesmo e na autoimagem
- Impulsividade em pelo menos duas áreas com potencial autodestrutivo (gastos extremados, sexualidade promíscua, abuso de drogas, direção irresponsável, crises anoréticas ou bulímicas)
- Gestos ou ameaças suicidas repetidos e comportamentos de automutilação
- Instabilidade afetiva, humor altamente reativo a pequenos estímulos, respostas de ansiedade, depressão ou irritabilidade exageradas, que duram algumas horas mas raramente mais do que alguns dias
- Sentimentos crônicos de vazio
- Crises intensas e inadequadas de raiva ou dificuldade de controlar a raiva, gerando brigas frequentes, explosões emocionais públicas e agressões físicas
- Ideias delirantes de perseguição ou episódios dissociativos graves, transitórios e relacionados à presença de estressores desencadeantes
Comorbidades
É incomum que os transtornos de personalidade se apresentem de forma pura. O mais frequente é estarem associados a outras patologias – transtornos depressivos, de ansiedade, abuso de substâncias, transtornos alimentares ou de estresse pós-traumático – e que a busca de atendimento seja motivada por tais quadros secundários. A associação com essas outras patologias torna o transtorno mais grave e difícil de tratar.
Causas
Não está ainda clara a origem do transtorno, mas as evidências indicam que há uma interação entre fatores genéticos e condições ambientais adversas. Ou seja, uma vulnerabilidade genética pode ser amplificada ou atenuada, conforme o ambiente. Figuram como fatores de risco ambientais os abusos sexuais, físicos e emocionais na infância. Entre 40% e 70% dos pacientes diagnosticados relatam ter sofrido abusos sexuais e emocionais continuados.
Alterações cerebrais
Alguns estudos apontam que o borderline tem uma diminuição na área pré-frontal do cérebro, que está relacionada com a tomada de decisões, com a avaliação sobre se determinado ato é bom ou mau. São redes neurais envolvidas no controle dos impulsos e na estabilidade dos afetos.
Idade
O transtorno costuma aparecer entre a adolescência e a idade adulta. Na idade madura, é usual que apresente uma forma um pouco atenuada.