Discussões sobre o tratamento da depressão mobilizam a população, já bastante bem informada a respeito da doença, e ainda mobilizam muito os especialistas, que precisam estar sempre atualizados sobre as mais recentes discussões acerca do assunto. O psiquiatra Benicio Frey fala sobre o que os clínicos devem saber quanto ao tratamento da depressão.
Natural de Rio Pardo, no Vale do Rio Pardo, e formado pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Frey é professor do Departamento de Psiquiatria e Neurociência Comportamental da McMaster University, no Canadá. Nesta entrevista, o médico repassa alguns dos principais tópicos sobre a depressão, como diagnóstico, existência de comorbidades como a ansiedade, tratamento e fase de manutenção.
— Isso é o que fazemos com as pessoas que têm falha no tratamento: reavaliamos — ressalta Frey. — Será que já tentei todas as combinações medicamentosas possíveis? Será que o paciente já fez todos os tipos de psicoterapia que são eficazes para a depressão? Remédio não é apenas de um tipo, tem vários tipos. Antidepressivos têm várias diferenças com vários mecanismos de ação. Hoje em dia, não é mais só serotonina e noradrenalina — explica.
Entender as causas da doença
"A abordagem da depressão, em geral, deve ser multifatorial. As causas podem ser diversas: a pessoa pode ter mais risco de desenvolver depressão por uma vulnerabilidade genética, por exemplo, ou ter familiares com depressão, transtorno bipolar, que tentaram suicídio, que desenvolveram psicose. Doenças mentais na família são muito comuns e aumentam o risco de a pessoa desenvolver depressão. Outros fatores são ambientais. Por que a depressão é mais comum nas mulheres do que nos homens? Um motivo pode ser biológico, há mulheres com mais sensibilidade às variações hormonais: dificuldades no período pré-menstrual, no pós-parto, na gravidez, na transição da menopausa. Mulheres também sofrem mais trauma, abuso sexual, abuso físico, abuso até verbal, bullying. São fatores que aumentam o risco de desenvolver alterações depressivas durante a vida. Temos que avaliar todas essas causas e não restringir a avaliação da depressão só a um fator ambiental ou biológico. Temos que entender a vida da pessoa, quem ela é, tudo por que passou, que família tem, para podermos ajudá-la. Pode parecer simples e que todo médico deveria fazer isso, mas não é o que acontece na prática clínica. Muitos pacientes que sofrem de depressão contam que as avaliações foram curtas, que eles não foram avaliadas de maneira mais aprofundada."
Primeira avaliação é demorada
"A pessoa sabe se está sendo bem avaliada pelo médico pelo feedback que ele tem de dar a ela. A avaliação leva, em média, duas horas de entrevista. Podem ser três horas, pode ser uma hora, depende da quantidade de informação que a pessoa tem. Uma coisa que aumenta bastante esse tempo são os eventos traumáticos de vida. O trauma causa uma vulnerabilidade muito grande. Trauma precoce causa risco para qualquer problema psiquiátrico. Algumas pessoas desenvolvem depressão, algumas desenvolvem estresse pós-traumático, ansiedade, até psicose. Então, se a pessoa tem bastante evento traumático, a entrevista vai demorar mais. Se não tem, a entrevista é mais curta. Depois eu sento com os pacientes e dou o resumo dessa avaliação: 'Vou lhe dizer todos os problemas que acho que estão acontecendo com você hoje e também na sua vida e você me corrige se eu estiver errado. Não é um diagnóstico final, não estou dizendo que tenho 100% de certeza de que é isso que você tem. Isso é o que acho que você tem, ainda vamos confirmar'. O diagnóstico final envolve uma discussão ativa entre o profissional e os pacientes."
Entender para tratar
"Muitas pessoas com depressão também têm outros problemas psicológicos. Às vezes, o paciente sofre de ansiedade. Sempre falo para os meus pacientes, meus alunos: quem se sente feliz sofrendo de ansiedade grave? Ninguém. Muitas vezes, o que aparece como depressão, tristeza, dificuldade de motivação, energia baixa, dificuldade de concentração é secundário a outro problema. Se não diagnosticarmos os outros problemas que podem estar causando a depressão, ficaremos tratando a pessoa como deprimida, e o tratamento não vai funcionar. Então, parte da avaliação também inclui quais são os outros possíveis problemas emocionais que essa pessoa pode ter. Ansiedade é só um deles. Tem abuso de droga, abuso de álcool, transtorno bipolar, esquizofrenia. Hoje está muito comum o transtorno de déficit de atenção (TDAH). Pense em uma pessoa que passou a vida com TDAH não diagnosticado, não tratado. A pessoa sabe que é inteligente, mas não consegue se desenvolver, estudar, crescer no trabalho, crescer na vida. O que vai acontecer é que, em algum momento, ela poderá ficar deprimida, vendo a vida passar e sofrendo. Se não tem o entendimento, a pessoa acaba se sentindo culpada e ficando para trás."
O papel da ansiedade
"Em 60% das vezes, a depressão anda junto da ansiedade. Se vejo uma pessoa que está ansiosa e deprimida, tenho que entender qual foi o curso dessas duas doenças. Elas apareceram juntas, fazem parte de um mesmo problema, ou seja, a pessoa tem uma depressão do tipo ansiosa ou desenvolveu ansiedade severa durante a vida? Ela tinha ansiedade desde a infância, adolescência, sempre sofreu e foi ficar deprimida aos 40 anos? Então essa pessoa não tem uma depressão ansiosa, ela tem uma ansiedade que causou uma depressão secundária. Os pacientes reclamam que muitos profissionais não fazem esse tipo de abordagem, que só veem o que está na frente deles, tratando a pessoa pelos sintomas que está apresentando agora, sem o entendimento diagnóstico da vida dela."
"Em 60% das vezes, a depressão anda junto da ansiedade. Se vejo uma pessoa que está ansiosa e deprimida, tenho que entender qual foi o curso dessas duas doenças. Elas apareceram juntas, fazem parte de um mesmo problema, ou seja, a pessoa tem uma depressão do tipo ansiosa ou desenvolveu ansiedade severa durante a vida?
BENICIO FREY
Psiquiatra
Decisão conjunta médico-paciente
"O tratamento sempre deve ser uma decisão conjunta entre médico e paciente. Hoje em dia, as pessoas têm mais acesso a informações corretas, o que nos ajuda a discutir os casos. Elas já vêm com algum entendimento. Antigamente, para uma pessoa saber de depressão, tinha que achar um livro de psiquiatria, um tratado de psiquiatria. Hoje está tudo na internet. Nesse ponto, as coisas evoluíram muito. Quando saí do Brasil e vim para o Canadá, 15 anos atrás, achei um tanto diferente a relação médico-paciente. No Brasil, existia maior distância entre o médico e o paciente no sentido de que o médico é quem sabe, o médico tem que me dizer o que tenho de fazer. Ao mesmo tempo, algumas pessoas pareciam não fazer um esforço maior para se envolver ou entender o processo diagnóstico, queriam basicamente ouvir do médico o que tinham que fazer. Hoje tem muito mais conversa. No Canadá é assim desde a escola de medicina, é assim que se ensina o médico a tratar. Quem decide o tratamento é o paciente, e o médico é um veículo de informação. Nós estudamos para saber quais são todos os riscos e todos os benefícios dos tratamentos. A gente propõe isso ao paciente. Ajudamos o paciente a entender o que está acontecendo do ponto de vista terapêutico. Isso é fundamental para a adesão ao tratamento. Eu explico: 'Você tem uma depressão leve ou moderada, pode começar com psicoterapia. Na leve a gente tende a não prescrever remédio, na moderada o remédio já é uma opção, na depressão severa é o contrário: não responde muito bem a terapia, responde bem melhor ao remédio'. Explico para a pessoa por que que estou sugerindo o quê, de acordo com o tipo de depressão. Estudos mostram claramente que, para depressão leve, é psicoterapia, para depressão grave é medicamento e, para depressão moderada, os dois são opções. Sempre que adicionar terapia ao remédio, tem melhores respostas. São bastante complementares."
Sessões de psicoterapia online
"Acho fantástico o tratamento virtual. Funciona muito bem na psiquiatria. No Canadá, a saúde mental é 100% pública. O governo da província do Estado onde moro, Ontário, montou um comitê para avaliar a eficácia do tratamento virtual. A pandemia fez todos nós corrermos para atender pelo Zoom. Tem vários estudos mostrando que o tratamento virtual funciona muito bem, melhora a adesão de pacientes que moram longe, que não têm tempo, que não têm ninguém com quem deixar os filhos. Dados indicam que a eficácia é tão boa quanto (a das sessões presenciais). Existem duas populações para quem o tratamento virtual ainda não é tão bom quanto poderia ser. São dois extremos de idade: os idosos, pelas dificuldades técnicas, e os adolescentes, pelas dificuldades de engajar e manter o tratamento virtual."
A depressão, na grande maioria dos casos, é uma doença crônica. A pessoa tem que se cuidar para não ter outro episódio depressivo no futuro.
BENICIO FREY
Psiquiatra
Quando o paciente melhora
"Quando o paciente melhora com o tratamento, ele entra na próxima fase, a fase de manutenção para prevenção de recaída. A depressão, na grande maioria dos casos, é uma doença crônica. A pessoa tem que se cuidar para não ter outro episódio depressivo no futuro. O episódio de depressão é traumático por si só, incapacita enormemente e é um trauma na vida, então a pessoa não quer ter de novo. É importante saber quem é essa pessoa. Ela teve um primeiro episódio, único, nunca teve outras depressões na vida? Ela terá um risco de 50% de ter um segundo episódio depressivo. Metade das pessoas que têm um episódio até mesmo grave não terá nunca mais um episódio na vida. Se o paciente teve dois episódios, o risco é de 70%. Então, quase um terço das pessoas que teve dois episódios não terá um terceiro. Mas, para as pessoas que têm três ou mais episódios, a partir do terceiro, a depressão tende a ficar mais crônica, elas têm mais de 90% de risco de ter um episódio futuro. A partir do terceiro episódio na vida, é quando o médico tende a sugerir a manutenção do medicamento. Se alguém quiser interromper o remédio em algum momento do tratamento, falamos que têm que manter por, pelo menos, um a dois anos. Se for interrompido antes disso, o risco de a depressão voltar é maior. Com psicoterapia, é a mesma coisa. O tratamento de manutenção tem as consultas mais espaçadas. E o paciente tem que aprender quais são os seus fatores de risco. Há pessoas muito mais sensíveis ao uso de qualquer substância, até álcool de forma recreativa. Tem pessoas que celebram com vinho com a família e os amigos e, no outro dia, não estão bem. Essas sabem que a substância afeta o humor delas e que devem evitar o consumo. Há pessoas muito suscetíveis à falta de sono. Alguns de nós dormem menos do que o habitual e, no outro dia, estão relativamente ok, enquanto outros, com a mesma diminuição do sono, ficam acabados, imprestáveis. E estar imprestável pode significar alteração de humor. Algumas pessoas se sentem sem energia, sem disposição, mais tristes e tal. Se a pessoa sabe que essas alterações de sono ou do estilo de vida pioram o humor dela, tem que evitá-las e ter estratégias para manter o sono, uma boa alimentação, atividade física. Atividade física sempre diminui o risco de depressão. Isso já está bem estabelecido. O exercício físico é antidepressivo."
Quando o paciente não melhora
"Teremos que voltar um passo atrás na avaliação e repensar o diagnóstico. Essa pessoa que estou tratando para depressão, cujo tratamento não funcionou, realmente tem depressão ou será que tem alguma outra coisa de que não me falou? Tive vários pacientes que tratei e não melhoraram. Daí, anos depois, vieram chorando, pedindo desculpa, 'estou bebendo há três anos e estava com vergonha de dizer'. O paciente não me conhecia, tinha muita vergonha e, com dois ou três anos de relacionamento profissional, começou a confiar. Então faz sentido o tratamento não ter funcionado. Vamos tratar o alcoolismo e depois voltamos para ver o que sobra. Às vezes, trata-se o alcoolismo e a depressão acaba, desaparece, porque a depressão é secundária ao alcoolismo. Às vezes, a pessoa trata o alcoolismo, ainda tem um pouco de depressão e aí o tratamento funciona. Se o diagnóstico está correto, se for mesmo depressão e o tratamento não funcionou, aí vamos pensar em outras modalidades de tratamento. Será que já tentei todas as combinações medicamentosas possíveis? Será que o paciente já fez todos os tipos de psicoterapia que são eficazes para a depressão? Ele estaria aberto a fazer, por exemplo, a estimulação magnética transcraniana, que hoje já tem bastante evidência científica? Remédio não é apenas de um tipo, tem vários tipos. Antidepressivos têm várias diferenças com vários mecanismos de ação. Hoje em dia, não é mais só serotonina e noradrenalina. Isso é o que fazemos com as pessoas que têm falha no tratamento: reavaliamos."