A Organização Mundial de Saúde (OMS) calcula que 5,8% da população brasileira tem depressão — no mundo todo, estima-se que a doença afete mais de 300 milhões de pessoas.
O transtorno mental tem múltiplas causas e apresenta sintomas como tristeza profunda, diminuição ou perda do interesse ou prazer nas atividades, alterações no padrão de sono e apetite, sentimentos de culpa e inutilidade, pensamentos de morte e atenção diminuída. Também é responsável por um grande número de casos de afastamento do trabalho e em relações interpessoais.
O tratamento da depressão vem tendo avanços, mas também enfrenta velhos desafios, como conta, na entrevista a seguir, Vitor Crestani Calegaro, professor adjunto do Departamento de Neuropsiquiatria e médico psiquiatra da Coordenadoria de Ações Educacionais, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS e pós-doutorando em Psiquiatria e Psicologia Médica na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Na psiquiatria, a gente não trata a depressão, a gente deve tratar a pessoa com depressão. O tratamento precisa ser individualizado.
O que há de mais moderno no tratamento da depressão?
Hoje, há diversas opções terapêuticas que não são exatamente modernas, mas das quais há mais estudos que comprovam a eficácia. Com relação a medicamentos, volta e meia surgem opções novas, mas, em geral, são versões melhoradas de antidepressivos. Melhoram a tolerabilidade do paciente, diminuem os efeitos colaterais, mas a eficácia não é muito diferente, com raras exceções, como a quetamina, ou cetamina, um anestésico que mostrou ter efeito importante na depressão, com melhora bastante rápida, e que começou sendo aplicado de forma intravenosa e hoje já tem uma solução intranasal, mas que precisa ser aplicada em clínicas adequadas, com monitoramento. Também não há grande diferença de eficácia entre terapia cognitiva comportamental, terapia psicodinâmica e terapia interpessoal — estou falando de uma forma genérica. São métodos que já existiam. O que evoluiu de lá para cá são estudos de eficácia que comprovam que essas técnicas funcionam. E a prescrição de atividade física vem crescendo em importância, particularmente para casos leves e moderados. É uma forma de tratamento, assim como as terapias nutricionais, sobre as quais ainda não há a mesma robustez de evidências, mas já aparecem nas diretrizes.
Em 2022, foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos, o primeiro tratamento para depressão de ação rápida. Segundo o fabricante, os efeitos benéficos do medicamento Auvelity, uma combinação de dextrometorfano com bupropiona, podem ser observados após uma semana de tratamento. O que se sabe sobre o Auvelity?
O Auvelity foi aprovado, mas ainda não está recomendado pelas diretrizes. Essas diretrizes são fundamentais, porque são organizadas por associações, entidades e órgãos internacionais com muitos especialistas que fazem uma revisão sistemática e analisam tudo o que existe de evidência para recomendar ou contraindicar um medicamento. Uma aprovação da FDA significa que pode usar, ok, fica a critério do médico. Mas em termos de recomendação formal de uso, ainda não há. A recomendação é baseada em estudos sobre o remédio funciona mesmo ou não, quais são os riscos e benefícios. Demora até que novos medicamentos cheguem aos guidelines. A gente perde algum tempo, alguns anos. Por outro lado, é só o tempo que vai dizer se aquele medicamento é realmente seguro e eficaz em relação a outros medicamentos existentes. Por mais que existam testes clínicos, uma coisa é no campo de estudos, mesmo num campo grande. outro é usar em larga escala um medicamento na população. A história da medicina tem vários exemplos de medicamentos que foram usados com as primeiras evidências, o que acabou trazendo uma série de consequências negativas. É preciso ter vários estudos mostrando que aquele resultado se repete mesmo. Por mais que possa existir uma certa euforia com um medicamento novo, com a rapidez da ação, a questão é saber para quem está indicado e quais são as contraindicações. É preciso olhar com esperança, claro, mas também com uma certa cautela. E não abrir mão de tratamentos que a gente já sabe que são eficazes e seguros.
Os tratamentos devem variar de acordo com o subtipo de depressão, certo? Em linhas gerais, quais são os subtipos mais comuns?
Existem vários subtipos, de acordo com o ponto de vista. Se é do ponto de vista do diagnóstico, há diversas síndromes depressivas: a depressão maior, unipolar, que pode ser recorrente; o transtorno depressivo persistente (a distimia); a depressão bipolar; a depressão pós-esquizofrênica; a depressão pós-parto; a depressão por uma condição médica geral ou por uso de determinados medicamentos, ou seja, que tem uma causa orgânica; a depressão sazonal, que ocorre no inverno, por exemplo... Existem vários diagnósticos possíveis, diferenciais, como a gente chama. Em se tratando de depressão maior, não muda tanto a base do tratamento farmacológico se ela é melancólica ou atípica, mudam principalmente os adjuvantes, que são medicamentos associados aos antidepressivos. Uma depressão com características psicóticas, por exemplo, irá necessitar de um antipsicótico associado a um antidepressivo, e muitas vezes, internação hospitalar devido aos riscos ao paciente ou a outros. E ainda podemos entender os subtipos de depressão do ponto de vista etiológico, os fatores causais, tanto os psicossociais, como um luto, um trauma, uma situação de burnout, quanto os biológicos. Os fatores psicossociais irão nortear o tipo de psicoterapia indicada. Quanto ao biológico, estudos mostram que algumas diferenças podem ser cruciais, mas aí estou falando num campo mais de pesquisa, coisas que estão sendo descobertas. Nesse sentido, estão sendo estudados diversos alvos terapêuticos diferentes do tratamento padrão, de antidepressivos, que envolvem neurotransmissores. A gente sabe que tanto a depressão unipolar quanto a bipolar cursam com um processo de neuroinflamação. Existem propostas de tratamento que possam oferecer algum agente que atue na inflamação. Também estão sendo estudadas terapias genéticas e epigenéticas que vão atuar no DNA. Existem estudos sobre cogumelos alucinógenos, pois evidências iniciais apontam para isso (o desenvolvimento de medicamentos com esses cogumelos). Existem fatores neuroendócrinos (hormonais) alterados em certos pacientes, mas não em outros. Cada tratamento precisa ser individualizado. Por mais que existam diretrizes para um série de tratamentos possíveis, na hora que se está na frente de um paciente real é preciso individualizar o tratamento. Na psiquiatria, a gente não trata a depressão, a gente deve tratar a pessoa com depressão. Por vários motivos. Primeiro, a depressão muitas vezes vem com comorbidades. É diferente tratar uma pessoa deprimida que faz abuso de álcool ou de substâncias e uma pessoa com depressão na velhice ou no puerpério. Tem medicamentos que funcionam muito bem para muitos pacientes, mas não para outros. O metabolismo é diferente de um sujeito para outro. Não existe receita de bolo. Vai depender muito do conhecimento do médico e da farmacologia, mas, mais do que isso, conhecimento do paciente, das suas reações a medicamentos, da sua história.
Existe o receio de que usar um medicamento psiquiátrico desqualifica a pessoa. É como se fosse um comportamento de fraqueza depender de um medicamento. Temos de entender que a depressão é uma doença como diabetes, problema cardíaco, problema renal. Por que a pessoa não se nega a tomar o remédio da pressão todos os dias mas acha ruim tomar um antidepressivo?
Quais são os mitos e os preconceitos que prejudicam o tratamento?
Vários mitos e preconceitos retardam muito a chegada do paciente ao consultório. Muita gente vê o comportamento de uma pessoa com depressão, que vai se tornando improdutiva, lentificada, desmotivada, e associa a preguiça, falta de vontade ou determinação, até mesmo uma fraqueza. Também é muito típico dizer a uma pessoa com depressão que ela tem de se ajudar, e isso não ajuda em nada. Na maioria das vezes, a pessoa já está fazendo o máximo para se ajudar. Outro mito é o de que os medicamentos vão causar danos no cérebro ou dependência. Bom, existem medicamentos que causam dependência química, isso é fato, mas nenhum dos tratamentos que são recomendados para depressão hoje causa dependência. É verdade que há alguns medicamentos associados que podem causar dependência, como os benzodiazepínicos, calmantes, para dormir, que são prescritos para um período curto, mas as pessoas ficam usando, renovando receita com médicos diferentes, sem ter o acompanhamento de um profissional que vá acompanhar a trajetória desse indivíduo. Mas uma pessoa que não faz tratamento tem grande probabilidade de ter episódios recorrentes, crônicos, duradouros, com grande impacto psicossocial. A depressão é muito associada a ausências no trabalho, afastamento, aposentadoria precoce, o que acarreta também uma perda financeira. Há também o afastamento nos relacionamentos interpessoais. Tudo isso é muito sério tanto para a saúde da pessoa, individualmente, quanto no sistema de saúde, na população. Isso impacta inclusive no potencial de geração de renda de um país. Outro problema é o receio de que usar um medicamento psiquiátrico desqualifica a pessoa, ela passa a ser vista e a se sentir como um paciente psiquiátrico. É como se fosse um comportamento de fraqueza depender de um medicamento. E não é nada disso. Temos de entender que a depressão é uma doença, que acomete não só a mente, mas o corpo também. É uma doença como diabetes, problema cardíaco, problema renal. Por que a pessoa não se nega a tomar o remédio da pressão todos os dias mas acha ruim tomar um antidepressivo? É basicamente a mesma coisa.
Qual deve ser o papel dos familiares e amigos no tratamento? Como cuidar para não ser invasivo, mas também não ser negligente?
Familiares e amigos são fundamentais. Os familiares são, em geral, o primeiro suporte. A compreensão dos familiares reduz o ônus da depressão. O reconhecimento dos momentos nos quais a pessoa está em crise ou em risco ajuda a prevenir muitas coisas, sobretudo o suicídio. E a família pode ajudar na organização do paciente, que às vezes nem lembra direito se tomou a medicação, e estimular as atividades físicas, sair de casa, tomar um sol. Quando o meio é positivo, facilita, mas muitas vezes a depressão vem em conjunto com um ambiente instável, uma família desestabilizada, afastada. A família em negação também piora o quadro. É preciso trabalhar de alguma forma com a família, se não for direta, porque nem sempre é possível, dentro da terapia individual. Bons amigos também vão oferecer suporte, encorajamento. tolerância nos momentos piores. Familiares e amigos devem demonstrar a preocupação, compreensão e afeto pela pessoa com depressão, mas não cobrança.
Há muito tabu em torno da eletroconvulsoterapia. Isso é um grande empecilho para aumentar a disponibilidade dessa técnica, tanto no SUS quanto na rede privada. Há um discurso que não passa por evidência científica e sim por opiniões e inclusive ideologias. É uma pena, porque a eletroconvulsoterapia pode realmente tirar uma pessoa do fundo do poço.
Na chamada depressão resistente ou refratária, quando medicações não resultam em melhora no quadro de saúde, como pode ser o tratamento?
A depressão refratária acontece quando se considera pelo menos dois tratamentos diferentes, com tempo de uso suficiente para surtirem efeito, com dose adequada, medicamentos adjuvantes, e mesmo mesmo assim não foi obtida uma mínima resposta pelo paciente, o que não significa estar completamente livre de sintomas. Há tratamentos indicados, como a própria quetamina, a eletroconvulsoterapia e a estimulação magnética transcraniana. Quando essa depressão é grave, envolve risco de suicídio e/ou quadros psicóticos, a eletroconvulsoterapia é uma indicação. Diferentemente de como ainda hoje é retratada em filmes, séries e novelas, como uma tortura, é um método bastante seguro, com anestesia geral e tecnologia de ponta, e utiliza uma carga elétrica mais branda e mais precisa, mais localizada. Ao contrário do imaginário de "fritar o cérebro", na verdade existe um processo de regeneração neuronal. Está muito mais próximo de um reset, de colocar uma energia que está faltando no paciente. Há altos índices de eficácia e muito menos efeitos colaterais do que havia nos anos 1950 e 1960. É uma técnica disponível pelo SUS, mas em pouquíssimos locais no RS. Tem no Hospital Universitário de Santa Maria, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e não sei se há em outros lugares. Há muito preconceito, muito tabu, que se difundiu por causa da ficção, como já citei, e de episódios reais, como o uso no tempo da ditadura militar, de uma forma que não deveria. Isso é um grande empecilho para aumentar a disponibilidade dessa técnica, tanto no SUS quanto na rede privada. Há um discurso que não passa por evidência científica e sim por opiniões e inclusive ideologias. É uma pena, porque muitas pessoas poderiam estar encontrando uma saída positiva para um problema tão grave. A eletroconvulsoterapia pode realmente tirar uma pessoa do fundo do poço.