Sem previsão de disponibilização da vacina contra a dengue no Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio Grande do Sul, a procura pelo imunizante na rede privada disparou. Na segunda-feira (5), a fabricante da Qdenga informou que limitará as doses na rede privada – e, agora, o imunizante já chega a estar esgotado em diversos estabelecimentos.
Somando o alto valor (em média, R$ 300 por dose) a uma perspectiva de não disponibilização na rede pública neste ano no RS, grande parte da população segue sem a possibilidade desse tipo de proteção, em meio ao crescente aumento de casos no Estado.
De acordo com a Secretaria Estadual da Saúde (SES), em 2023, o Estado apresentou 38.221 casos confirmados, com 54 mortes em razão da doença. Apesar de o número ter sido menor do que em 2022 (66), "a análise de dados demonstra uma elevação na letalidade da doença, considerando o número de casos confirmados", segundo a pasta.
Nos últimos anos, os casos têm ocorrido durante todos os meses do ano, demonstrando que não há mais sazonalidade de dengue. O Estado também atribui o cenário atual a mais um fator agravante: a vigência do fenômeno meteorológico El Niño, que provoca grande volume de chuva e que, associado a altas temperaturas e ao aparecimento e à permanência de criadouros do mosquito Aedes aegypti, devido ao acúmulo de entulhos das enchentes.
A SES reforça que a Qdenga não será utilizada em larga escala em um primeiro momento. "A vacinação contra a dengue tem como objetivo a redução das hospitalizações e óbitos decorrentes das infecções pelos vírus da dengue na população-alvo para a vacinação", esclarece a secretaria.
O laboratório fabricante, Takeda, destaca que trabalha para garantir o esquema vacinal para quem já tomou a primeira dose nas clínicas, mas "está concentrada em atender de forma prioritária à demanda do Ministério da Saúde, conforme a estratégia vacinal definida pelo Departamento do Programa Nacional de Imunizações (DPNI) que considera faixa etária e regiões para receberem a vacina".
No Brasil, a faixa etária de 10 a 14 anos foi eleita para iniciar a vacinação no Brasil. Foram elencados municípios de grande porte (população maior ou igual a 100 mil habitantes) com alta transmissão de dengue nos últimos 10 anos e pelo maior número de casos no monitoramento 2023/2024. "O RS neste primeiro momento não alcançou o rankeamento conforme os critérios estabelecidos, de acordo com o quantitativo de doses a serem entregues pelo fabricante", afirma a nota da SES.
O Ministério da Saúde, por sua vez, defende ter adquirido todo o estoque disponível de vacinas – 5,2 milhões entre fevereiro e novembro deste ano. "Além dessas, também serão distribuídas 1,32 milhão de doses fornecidas sem custo ao Governo Federal. Para 2025, 9 milhões de doses que estavam disponíveis também foram compradas. É importante reforçar que outras aquisições podem ser feitas se houver nova disponibilidade de doses ao Ministério da Saúde." Neste ano, no entanto, o RS não deve receber a vacina, de acordo com a pasta.
Vacina em falta na rede privada
A reportagem de GZH entrou em contato com redes de farmácias para averiguar a disponibilidade do imunizante. Na Panvel e na Droga Raia, ainda há algumas doses disponíveis em algumas unidades. Na Preço Popular, havia apenas uma unidade quando a reportagem acionou o estabelecimento. Nas clínicas privadas, a situação é de escassez: na Clínica Imunitá, Clínica Saúde Multivacinas, Clínica Vacine, Previne Centro de Vacinação e na Clínica Moinhos de Vento, não há mais estoque da vacina. Apenas a Unimed Porto Alegre ainda possui doses.
Os empreendimentos consultados estão aguardando orientações do laboratório sobre a segunda dose e tentando negociar uma reposição do estoque. A Clínica Moinhos de Vento informou que não há obrigatoriedade por parte dos estabelecimentos de reserva de vacinas para a segunda aplicação. A Takeda informou à reportagem que está "trabalhando junto aos nossos distribuidores para priorizar que as pessoas que tomaram a primeira dose do imunizante na rede privada completem o seu esquema vacinal de duas doses subcutâneas em um intervalo de três meses, cabendo às clínicas realizarem este controle".
Além da Qdenga, há o imunizante Dengvaxia, disponível há mais tempo, apenas para quem já foi infectado pelo vírus da dengue. No entanto, a vacina não está disponível em nenhum dos estabelecimentos consultados pela reportagem.
Prevenção e alerta
Médico infectologista da Santa Casa, Cezar Riche confirma os fatores que culminaram no cenário atual de proliferação de casos no RS: a existência de uma população suscetível; a circulação do vírus dos tipos 1 e 2; a multiplicação do vetor devido a questões ambientais, com temperaturas altas e chuva; a permanência dos reservatórios onde ficam as larvas, que pode ter se agravado por falta de cuidados e por eventos climáticos extremos.
“Pessoas que não têm o poder aquisitivo para buscar a vacina ficam mais expostas.
CEZAR RICHE
Médico infectologista da Santa Casa
Ainda que outras regiões do país concentrem um maior número de casos, no RS, o cenário está acelerando, avalia Riche. Como há muitas pessoas infectadas, existe uma facilidade ainda maior de os mosquitos se contaminarem e, em seguida, contaminarem outras pessoas.
Em meio a essa realidade, o Estado acaba ficando na retaguarda dessa estratégia de prevenção e excessivamente exposto, ressalta o infectologista. Uma das alternativas é seguir as estratégias clássicas: cuidar dos reservatórios, tentar eliminar os mosquitos, adotar telas e mosquiteiros, usar repelente.
A outra é pagar pelo imunizante na rede particular. O médico reconhece, porém, que ele não é barato, mas incentiva que, quem tiver condições, busque o esquema vacinal, pois ainda espera-se um crescimento e grande circulação do vírus nos próximos meses. Além disso, avalia que a disponibilização da vacina para todos não deve ocorrer em breve. Assim, a população de baixa renda fica desassistida.
— Pessoas que não têm o poder aquisitivo para buscar a vacina ficam mais expostas — diz.
Não houve um cenário de compra insuficiente de doses, e sim uma capacidade limitada do fabricante, segundo Riche – o Ministério da Saúde informou a reportagem de GZH que comprou todas as doses disponibilizadas.
Em relação a prevenção, porém, o médico avalia que as ações não tiveram êxito e que é necessário promover mais campanhas. Riche acredita que os alertas já poderiam ter começado logo ao início do verão, pois já havia expectativa de aumento de casos. Contudo, ele destaca também a importância de a sociedade também cumprir seu papel, que inclui receber agentes sanitários e profissionais e permitir que auxiliem e façam seu trabalho.
— Eu insisto muito nas pessoas, porque tem uma parte do governo municipal, estadual e federal de fazer campanhas, orientação, tentar fazer a eliminação dos focos de mosquito em áreas públicas, mas muito é no interior das casas. E a gente segue vendo reservatórios de criadouros de mosquito, como lixo, garrafa, pneu, potinho, vasinho, piscina não cuidada. Existe uma questão de educação populacional muito importante que, há anos, a gente não consegue reverter — lamenta.
Dificuldade técnica
A existência de apenas duas vacinas aprovadas pela Anvisa pode ser explicada pela dificuldade técnica de produzir uma vacina que promova proteção contra os quatro tipos da dengue, explica o médico. A doença tem maior gravidade nos casos de reinfecção, pois o corpo produz anticorpos específicos para cada tipo, não gerando resposta adequada aos outros.
— Existe uma dificuldade técnica de se produzir uma vacina que proteja eficazmente contra os quatro tipos e que não aumente o risco de um evento adverso para os tipos que ela não imunizaria. A Qdenga hoje se mostra uma vacina plenamente capaz de fazer isso — destaca.
Além disso, doenças tropicais, inclusive as arboviroses (transmitidas por artrópodes), estão, muitas vezes, no painel das doenças negligenciadas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Historicamente, isso faz com que haja menos recursos e pesquisas mundiais para a produção de tratamentos ou imunizantes.