Existe uma síndrome rara que provoca sono involuntário durante o trabalho e outras situações que podem ser perigosas como, por exemplo, quando a pessoa está dirigindo. Esse distúrbio neurológico, chamado de narcolepsia, pode afetar as atividades do dia a dia por conta da vontade excessiva de dormir em qualquer hora ou lugar.
A doença também paralisa o paciente durante o repouso e pode provocar alucinações durante o sono, como a pessoa sentir que está sonhando acordada, além de episódios temporários de fraqueza muscular — cataplexia.
Os ataques de sono podem ocorrer diversas vezes durante o dia, sem o controle do indivíduo. Quem sofre com narcolepsia pode adormecer involuntariamente mesmo que esteja conversando, dançando, comendo ou até mesmo dirigindo. Com frequência, após esses cochilos — que podem durar de dez minutos a mais de uma hora — os pacientes sentem-se mais descansados.
O surgimento dos primeiros sintomas, como sonolência excessiva, alucinações ao adormecer ou acordar, e paralisia do sono, é mais comum entre os jovens, apresentando dois picos de incidência, por volta dos 15 anos e, posteriormente, dos 35 anos.
As estimativas globais indicam uma prevalência variável de 0,1 a 17 pessoas para cada 100 mil habitantes. No Brasil, observa-se uma prevalência intermediária, mas ainda não há dados concretos disponíveis. Segundo especialistas entrevistados, não existem diferenciações étnicas significativas, embora haja uma leve tendência de o problema ser mais comum em homens.
O estudante de medicina Vitor Dmetruk Carvalho, 21 anos, sabe das dificuldades de viver com narcolepsia. Ele foi diagnosticado aos 15 anos e conta os problemas que enfrentou.
— Já deixei de fazer a prova de vestibular, dormi diversas vezes na aula e nas provas, na academia e enquanto tocava bateria. Quando o sono vem, tenho que deitar atrás da bateria e tirar um cochilo por alguns minutos. Não consigo evitar. Antes de receber o diagnóstico, cheguei a sentir sono durante o passeio a um parque temático. Isso sem falar quando estou andando de ônibus e até de bicicleta. Quando isso aconteceu, tive que parar de pedalar, sentar em algum banco e esperar o período de sonolência terminar — revela.
Após o diagnóstico, os pais de Carvalho receberam orientações sobre os cuidados com a rotina e a higiene do sono — um conjunto de práticas que devem ser seguidas antes de dormir, com o objetivo de facilitar o início do sono — a fim de reduzir os episódios de sonolência durante o dia. Apesar desses cuidados e do uso da medicação indicada pelos médicos, o estudante ainda enfrenta crises durante o dia, com uma média de três episódios, cada um com duração de pelo menos 30 minutos.
O que causa a narcolepsia?
A ciência ainda não conhece o mecanismo que leva ao desenvolvimento de todos os casos de narcolepsia. Contudo, evidências consistentes sugerem que pessoas com predisposição genética, quando expostos a algum gatilho ambiental, como infecção ou vacinação, por exemplo, ativam o sistema imunológico, desenvolvendo células de defesa contra um grupo de neurônios específicos de uma região cerebral conhecida como hipotálamo lateral.
— Esses neurônios são responsáveis pela produção da hipocretina, substância que promove o despertar e mantém a estabilidade das fases do sono. Com a queda da hipocretina, os indivíduos ficam susceptíveis a uma maior sonolência e instabilidade no decorrer do sono, sobretudo do período do sono REM (sigla em inglês para movimento rápido dos olhos, que é a fase mais profunda do sono)—, explica o neurologista Lúcio Huebra, que é mestre em Psicobiologia — Medicina do Sono — e professor do curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo, além de membro titular da Academia Brasileira de Neurologia, da Associação Brasileira de Sono e da European Sleep Research Society.
— Além disso, algumas lesões cerebrais, como encefalites ou esclerose múltipla, também podem causar narcolepsia —, complementa o neurologista e neurofisiologista clínico Leonardo Ierardi Goulart, especialista em medicina do sono e médico do corpo clínico do Hospital Israelita Albert Einstein.
Medidas comportamentais no tratamento
A narcolepsia não tem cura. O tratamento visa exclusivamente controlar os sintomas, como a sonolência excessiva durante o dia. Para isso, são prescritos medicamentos estimulantes de uso controlado, que promovem um maior estado de alerta. No caso de outros sintomas, é necessário combinar o uso de medicamentos da classe dos antidepressivos — a prescrição não se baseia no efeito desses medicamentos no humor, mas sim em seu impacto direto no sono, evitando a ocorrência desses fenômenos.
— Infelizmente, o tratamento completo disponível no Brasil não é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou por convênios médicos. Apenas alguns dos antidepressivos usados no tratamento da cataplexia são distribuídos gratuitamente. As medicações são de alto custo, o que dificulta o tratamento adequado no país, especialmente nas doses necessárias para um adequado manejo — ressalta o neurologista Huebra.
Os especialistas destacam que algumas medidas comportamentais têm papel fundamental dentro do tratamento, como cultivar uma boa higiene do sono, procurar não dormir tarde e evitar o uso de telas à noite, além de tirar cochilos curtos programados e distribuídos ao longo do dia para evitar adormecer em situações inapropriadas.
Ao longo da evolução do distúrbio, é comum o indivíduo apresentar outros sintomas associados, como ganho de peso, desenvolvimento de apneia do sono, transtornos psiquiátricos - principalmente depressão e ansiedade - e aumento do risco cardiovascular.
Huebra ressalta, ainda, que existem benefícios de acompanhamento com uma equipe multidisciplinar, incluindo educador físico, nutricionista e psicólogo, visando a melhora de outras medidas comportamentais, como a prática de atividade física aeróbica, o controle de peso, e de sintomas depressivos e ansiosos.
— A cafeína, por exemplo, é um estimulante de amplo acesso que pode ser usado em casos de sonolência diurna, porém, como na narcolepsia há uma tendência de sono noturno fragmentado, é recomendado a redução do consumo no período noturno, sobretudo próximo ao horário de dormir — pontua o médico.
Pacientes em tratamento apresentam uma melhora de qualidade de vida com atenuação dos sintomas, porém uma remissão completa das queixas é geralmente difícil, mesmo com o tratamento otimizado.
— Algumas limitações podem persistir, como a tendência de adormecer em atividades monótonas e pouco ativas, risco de acidentes por cataplexia, necessidade de cochilos programados em intervalos de trabalho ou estudo — adverte Goulart.