Acumulavam-se os indícios de que algo não ia bem. A incapacidade do administrador de empresas Volnei Santos Jardim, 64 anos, de se lembrar onde havia deixado a carteira ou as chaves atrasava toda saída de casa, obrigando a família a ajudar a procurar os itens perdidos. Ele ficava brabo a ponto de manifestar a vontade de desistir.
— A minha cabeça não está boa — reclamava Volnei.
Em uma consulta com um neurologista, cinco anos atrás, a esposa de Volnei, Neila Maria Rodrigues Goulart, 61 anos, ficou profundamente surpresa: em um teste cognitivo, ele não soube citar o ano em que estavam, 2018.
— Ele sempre foi um homem muito inteligente — lamenta a funcionária pública aposentada, recordando as sucessivas perdas desde então.
Eram os sintomas iniciais da doença de Alzheimer, condição neurodegenerativa progressiva marcada pela deterioração da cognição e da memória. Um dos primeiros e mais característicos sinais é a perda da memória recente, como no caso de Volnei. O profissional autônomo enfrentou um câncer no pulmão em 2019, e os esquecimentos perderam o status de prioridade naquele momento. A pandemia apresentou outros tantos obstáculos. O tempo passava enquanto Volnei ficava mais desorientado e debilitado pelo tratamento oncológico, que o fez emagrecer 30 quilos.
O nome da demência foi pronunciado por um segundo neurologista, no ano passado, quando o médico pediu que o paciente reproduzisse o desenho de uma figura geométrica. Volnei não conseguiu unir as linhas no papel, os lados da figura não se encontravam em todos os pontos.
— Achei que poderia ser uma metástase do pulmão no cérebro, mas não aparecia nada nas tomografias — conta Neila. — Já tinha passado pela minha cabeça que era Alzheimer. Quando começamos a respirar depois do câncer, veio isso — confidencia, os olhos cheios d'água.
Quando ela questionou o que poderia fazer, o especialista comparou:
— Sabe um caminhão carregado, lomba abaixo, com o freio de mão puxado?
Ela não esconde o mal-estar que o diálogo lhe provoca até hoje.
— O freio seria a medicação, que tenta retardar a evolução — explica a esposa. — Achei cruel. Quem dirige sabe — acrescenta.
Neila fala sobre a sentença que mudou a vida do casal e do filho, Matheus Goulart Jardim, 32 anos, sentada na aconchegante área da frente da casa, no bairro Vila Cachoeirinha, em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre. Para não abordar a enfermidade na frente do marido, enquanto recebia a reportagem de GZH, ela pediu que o companheiro fosse "trabalhar" no quintal — o que ele ainda consegue fazer é apenas mover e empilhar blocos de madeira com que antes produzia peças de marcenaria. Volnei tem grande dificuldade para se expressar. Pronuncia palavras soltas, sem sentido no conjunto ou relação com o que está sendo discutido. A compreensão também está bastante afetada. Se Neila pede que a ajude trazendo um balde, ele pode pegar uma vassoura.
Quadro de depressão ou ansiedade
Os sintomas iniciais de Alzheimer podem afetar as áreas de memória, raciocínio, atenção, orientação e linguagem, explica o psiquiatra geriatra Gabriel Behr, do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Com a evolução da demência, essas funções interferem na autonomia do paciente, que passa a apresentar dificuldades para atividades do dia a dia, como pagar contas, cozinhar, marcar uma consulta, tomar os remédios. Sobre os danos à memória recente, muito comuns, Behr comenta:
— A pessoa começa a se repetir. Às vezes, isso é notado pelo paciente, que traz a queixa, mas, outras vezes, é a família que nota. As memórias do passado, antigas, tendem a não se alterar no início. E tem oscilações, a memória flutua, parece que um dia está um pouco melhor, mas não é uma melhora completa.
Pode haver um quadro de depressão ou ansiedade. O paciente parece desanimado, triste, indiferente. Surgem também alterações da linguagem, pontua a neurologista e psiquiatra Silvia Stahl Merlin, vice-diretora do Departamento de Psicogeriatria da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e médica assistente do Hospital das Clínicas de São Paulo.
— Há dificuldade de encontrar palavras. A pessoa quer falar "pires" e fala "aquela coisa de colocar embaixo da xícara". Quer falar "ferro" e fala "aquela coisa que usa para passar roupa" — exemplifica Silvia.
O diagnóstico pode ser feito por psiquiatra, neurologista, geriatra ou clínico geral. A avaliação de um especialista é imprescindível.
— De maneira geral, as queixas de que pode ser Alzheimer se confundem com situações corriqueiras. O importante é perceber se estão numa frequência maior e se isso já era habitual da pessoa. Tem gente mais desatenta — observa a médica da ABP.
"Fiquei só"
Neila e Volnei estão casados há 35 anos. Na vida anterior ao Alzheimer, era hábito do marido levar uma xícara de café para a esposa de manhã, na cama. Faz anos que ele não sabe mais preparar café, e a prática se inverteu. Há dias em que o paciente acorda tão perdido que não consegue reconhecer a família. Pensa que Neila é a empregada da casa, não sabe quem é o filho.
— Você está aqui? — pergunta ele, como se fosse incapaz de conceber a presença dela diante de si mesmo. — E aquele rapaz? É seu?
Os pais e o irmão de Volnei morreram há décadas, e recentemente ele se surpreendeu com essa informação, como se fosse novidade. Chorando, caiu numa espiral de inconformidade e repetidos questionamentos que durou uma semana:
— Cadê meu pai? Cadê minha mãe?
É preciso se habituar a uma constante de despedidas. Em termos de autonomia, raciocínio e comportamento, tudo mudou. Neila sente falta de conversar com Volnei sobre os mais variados assuntos.
— Essa pessoa, eu perdi. A pessoa está ali, mas não está ali. Fiquei só. Meu filho diz que tinha tanta coisa para conversar com o pai dele, mas o pai dele não existe mais — lastima a aposentada. — Ele não consegue mais se relacionar com a gente como era antes, mas sabemos quem ele era e fazemos isso por ele — completa.
Neila recomenda que quem enfrenta desafio semelhante tente superar o choque o mais rapidamente possível, passando logo pela fase de negação. Ela foi atrás de informações, com cursos, workshops e a entrada no Grupo de Apoio Emocional da regional Rio Grande do Sul da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz). Encara a doença como uma condição da qual o marido não tem culpa e não se envergonha de revelá-la aos outros. Convive com a perspectiva de que o pior está sempre por chegar:
— Estou aprendendo a não pensar lá adiante. Penso no hoje. Hoje está bem, está tudo certo. O que tenho que fazer é hoje. Amanhã nós vamos ver.
"Não é a minha mãe"
"Comecei a notar em 2019. Ela foi fazer um cheque para mim e ficou na dúvida sobre o meu nome, qual sobrenome colocar. Marcava coisas e esquecia. Marcou de almoçar com a minha tia e não lembrou. Comentei: 'Acho que a mãe está com demência'. Começou a gastar demais. Foi para Paris, Veneza, Grécia. Eu ficava um pouco preocupada com esse descontrole financeiro.
Em 2020, ela quebrou o braço, fez cirurgia, botou nove pinos. Dali, foi ladeira abaixo. Senti o declínio. O neurologista falou em 'comprometimento cognitivo'. Peguei os cartões (do banco) para mim. Quando olhei, havia só R$ 30 na poupança, tinha gastado tudo. Era muita gastança. Foi um alerta. Ela sempre foi muito controlada. Me apavorei.
Ela começou a perder o interesse pelas coisas. O condomínio atrasava, ela não ia mais ao mercado. A mãe sempre foi uma mulher muito vaidosa. Começou a vestir qualquer coisa, a não secar o cabelo. Antes ia toda semana ao salão. A casa ficou bagunçada, as roupas socadas no guarda-roupa. Quando começou a fazer xixi na calcinha, tirava a calcinha e a jogava embaixo da cama.
Perdia o filtro: 'Como você está gordo', 'olha a fulana, como é bunduda'. Ano passado, ela fez pipoca com a panela destapada. 'Mãe, você tem que tapar a panela!', eu disse. Ela respondeu: 'Ah, é?'.
Quando o médico falou em demência vascular, foi um choque, mas eu já estava meio que preparada. Via que não era normal. Era gritante. Não podia mais deixá-la sozinha. Outra neurologista disse que ela também tem sinais de Alzheimer. É uma demência mista.
Faz quatro meses que está em uma clínica. 'Por que você não cuida da sua mãe?', me perguntam. Se não me perguntam, sempre acho que as pessoas estão pensando isso. 'Você é filha única e não vai levá-la para a sua casa', me dizem. Não tenho disponibilidade e não tenho disposição. Minha mãe viveu a vida dela, viajou, fez muitas coisas que queria. Estou só na metade da minha vida. Mas me sinto culpada todos os dias. Para mim, é isso o que mais pega. Mais do que a doença dela.
Ela ainda me reconhece. De memória recente, não tem nada. Cheguei lá com um tênis novo. Ela disse 'que bonito o seu tênis'. Não deu dois minutos e falou no tênis de novo. Não adianta bater de frente, dizer 'mas eu já disse'. Estou aprendendo.
Ainda me perturbo. Estou no processo (de me acostumar). Não é a minha mãe. Tem coisas que me deixam triste, chocam. A preocupação é até onde vai, como vai ser, o que vem pela frente, qual será o nível de dependência.
É tão louco que acho que nem sei explicar como me sinto. É um luto. Agora sou mãe dela. Não tem mais 'mãe, me ajuda a cuidar do meu filho'. Ela sempre me deu muitos presentes. Agora não vai comprar, nem tem dinheiro. Todo o dinheiro é para a clínica, para comprar remédio. A aposentadoria vai toda para isso, e ainda falta."
Lissandra Gallo de Mendonça, 47 anos, jornalista, filha de Sandra Gallo, 77 anos, professora aposentada
O que é
- O Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva caracterizada pela deterioração da capacidade cognitiva e da memória. Trata-se do tipo de demência mais comum que existe.
- Apresenta uma variedade de sintomas neuropsiquiátricos e de alterações comportamentais.
- Compromete cada vez mais as atividades cotidianas.
- Tem evolução lenta, ao longo de anos.
Sintomas
- Quadro de depressão ou ansiedade
- Perda de memória recente
- Repetição da mesma pergunta várias vezes
- Dificuldade para acompanhar conversas e pensamentos complexos
- Problemas de concentração
- Incapacidade de elaborar estratégias para resolver problemas
- Dificuldade para dirigir e encontrar caminhos conhecidos
- Dificuldade para encontrar palavras que exprimam ideias ou sentimentos pessoais
- Irritabilidade
- Suspeição injustificada
- Agressividade
- Passividade
- Interpretações incorreta de estímulos visuais ou auditivos
- Tendência ao isolamento
Estágios
- Estágio 1 (forma inicial): alterações na memória, na personalidade e nas habilidades visuais e espaciais.
- Estágio 2 (forma moderada): dificuldade para falar, realizar tarefas simples e coordenar movimentos, agitação, insônia.
- Estágio 3 (forma grave): resistência para executar tarefas diárias, incontinência urinária e fecal, dificuldade para comer, deficiência motora progressiva.
- Estágio 4 (terminal): restrição ao leito, mutismo, dor para deglutir, infecções.
Fatores de risco
- Idade acima de 60 anos. É uma doença comum a partir dos 80 anos
- Pressão alta
- Consumo excessivo de álcool
- Obesidade
- Diabetes
- Perda auditiva sem uso de aparelho
- Tabagismo
- Depressão
- Isolamento social
- Sedentarismo