A falta da segunda dose da vacina contra a covid-19 registrada em grande parte do Brasil nos últimos dias pode ser explicada por um erro do governo federal cometido no ano passado, uma decisão combinada sob alta pressão entre Estado e municípios gaúchos e a dificuldade do Instituto Butantan em fabricar vacinas no prazo estimado.
A escassez é da CoronaVac, imunizante produzido pelo Butantan e que representa 70% de todas as aplicações no Rio Grande do Sul – o Conselho das Secretarias Municipais de Saúde (Cosems) de cidades gaúchas não registra falta de segunda dose da vacina de Oxford, distribuída pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). É um entrave que ocorre não apenas em solo gaúcho, mas também em outros Estados, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Norte.
Tomar a segunda dose alguns dias após o recomendado não reduz a eficácia da vacina – apenas atrasa o momento em que o imunizante fornecerá a proteção esperada. O real prejuízo, alertam especialistas, seria se parcela da população simplesmente não buscasse a injeção de reforço.
O Ministério da Saúde recomenda que aqueles que não tomaram a segunda dose dentro do prazo estabelecido recebam a aplicação assim que possível com o imunizante do mesmo laboratório.
Para entender a falta da segunda dose, é preciso voltar um pouco no tempo. Ao longo de 2020, o governo Jair Bolsonaro apostou todas as fichas na vacina de Oxford e demorou a firmar acordo com outras farmacêuticas, o que atrasou a vinda de mais imunizantes ao país e imprimiu um ritmo de vacinação mais lento do que o esperado, avalia o médico Ricardo Heinzelmann, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e professor na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
— A compra internacional é feita pelos governos de cada país. O governo federal chegou a negar uma proposta de compra da Pfizer e demorou muito para negociar com demais laboratórios. Com uma vacinação inicial a conta-gotas e uma demora muito grande para entrar em novas faixas etárias, o governo federal liberou a possibilidade de usar todo o estoque para a primeira dose, confiando em um cronograma de produção da Fiocruz e do Instituto Butantan — diz Heinzelmann.
A orientação do Ministério da Saúde para usar as vacinas recebidas na primeira dose, sem guardar grandes quantidades para a segunda aplicação, ocorria informalmente em declarações do ex-ministro Eduardo Pazuello, pontuam gestores ouvidos por GZH, mas veio oficialmente só em março, auge da terceira onda da pandemia, atendendo a pedido da Frente Nacional de Prefeitos (FNP). Em nota técnica, a pasta dizia que disponibilizaria, "em tempo oportuno", as doses de reforço.
Só que o Rio Grande do Sul adotou tal entendimento bem antes, em janeiro, após acordo fechado entre a Secretaria de Estado da Saúde (SES) e as prefeituras gaúchas, por meio do Cosems.
— O ex-ministro da Saúde (Eduardo Pazuello) tinha colocado que Estados e municípios não se preocupassem e que o importante era aplicar a primeira dose, porque a segunda viria na sequência. Essa fala ecoou e fomos induzidos a não guardar. Além disso, como a gente diria naquela época de março, o pior momento da pandemia, para deixar as doses estocadas com um quadro de contaminação gigantesca? Era impossível pensar em guardar dose — resume o diretor da Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre, Fernando Ritter.
Um dos resultados de se usar as vacinas disponíveis para o máximo de pessoas novas em vez de guardá-las para depois, defende o Palácio Piratini, é que o Rio Grande do Sul é, proporcionalmente, o Estado que mais aplicou a primeira dose na população – 19,1% dos gaúchos.
Mas o ritmo de recebimento das doses caiu fortemente nas últimas remessas do Ministério da Saúde. Se, em 30 de março, 85,1 mil gaúchos foram vacinados com a primeira dose (recorde até agora), a última segunda-feira (26) registrou 83% menos aplicações iniciais.
A queda foi forte no recebimento de CoronaVac, após o Butantan lidar com um atraso de 20 dias no recebimento de Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), entregue apenas em 19 de abril. Segundo o diretor do Butantan, Dimas Covas, houve burocracias na importação. Como resultado, o envase da vacina chegou a ser paralisado por alguns dias.
— As secretarias estaduais e municipais de saúde seguiram a orientação do ministério para não guardar vacinas e, assim, aplicá-las em primeira dose. Essa orientação foi manifestada com a garantia da que o Ministério da Saúde receberia doses. Como isso não se consolidou, vivemos hoje um período de dificuldade no abastecimento — diz Maicon Lemos, presidente do Cosems.
Nesta semana, o Rio Grande do Sul sequer receberá doses do Butantan, apenas do imunizante de Oxford/Fiocruz – a previsão de envio de CoronaVac feita por Covas foi para o fim da semana que vem, em 3 de maio.
— Como houve uma dificuldade de encaminhamento de vacinas por parte do Butantan, uma vez que houve falta de IFA, não se conseguiu produzir o que estava pactuado no cronograma de entrega, e isso prejudicou justamente no período que corresponde ao início da aplicação da segunda dose para grande parcela das pessoas. Isso impacta na evolução da vacinação dos grupos prioritários e da aplicação de segunda dose pra quem aguardava — afirma Tani Ranieri, diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde da Secretaria Estadual da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul.
Contatado por GZH, o Butantan destaca que a estratégia de vacinação e a logística de distribuição de vacinas contra o coronavírus no Brasil é de responsabilidade do Ministério da Saúde, não do instituto. Também diz que já entregou 41,4 milhões de doses ao governo federal, que o IFA recebido em 19 de abril permitirá entregar 5 milhões de doses da CoronaVac a partir de 3 de maio e que, até o fim de agosto, terá entregue 100 milhões de doses ao Brasil.
Já o Ministério da Saúde afirma que os informes técnicos com as recomendações para vacinação são definidos semanalmente com representantes da União, de Estados e de municípios com base no número de doses da vacina entregues pelos laboratórios. Em declaração na segunda-feira (26), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, disse que a pasta deve emitir nova nota técnica para orientar Estados e municípios a voltarem a guardar vacinas para a aplicação da segunda dose. A decisão é referendada por especialistas consultados por GZH e é cogitada por autoridades gaúchas.
— Naquele momento, com a situação epidemiológica da doença e quando parecia que Butantan e Fiocruz estavam com produção e entrega constantes de vacinas, havia certa tranquilidade para focar na primeira dose e, com isso, ampliar a proteção das pessoas. Só que agora, com diminuição da doença, temos que rever essa decisão por não termos total segurança da entrega do produto, ao menos até começarmos a ter produção nacional de IFA e não dependermos de compra externa — avalia Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Ricardo Heinzelmann, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, classifica a situação como uma “sinuca de bico”, mas destaca que priorizar a primeira aplicação de doses trouxe efeitos positivos:
— Ao vacinar o maior número de pessoas de maior faixa etária, reduzimos a mortalidade. Isso já percebemos. Foi uma condição difícil a que Estados e municípios foram submetidos, mas a responsabilidade disso é do governo federal, que não comprou doses suficientes lá atrás.
Tani Ranieri, da SES, afirma que as próximas remessas de vacina deverão ser destinadas à aplicação de segunda dose e que o Estado deve defender, em reunião com secretários municipais de saúde, a reserva de segunda dose da CoronaVac no futuro. Ela apoia a decisão, acordada com as prefeituras gaúchas, para o uso da maioria das doses na primeira aplicação da população:
— Quando a pessoa recebe a primeira dose, já pode estar protegida contra o coronavírus. Acho prudente termos um percentual de doses reservadas caso haja algum problema de desabastecimento. Mas a gente tinha perspectiva de receber mais doses agora. Chegamos a receber mais de 600 mil doses de CoronaVac em uma remessa e, em outra, caiu para 50 mil. Infelizmente, é uma situação que não estava sendo esperada — diz Tani.
A avaliação é compartilhada por Fernando Ritter, diretor da Vigilância em Saúde de Porto Alegre.
— Espero que isso sirva de lição para todos nós. Vou defender a ideia de que é preciso garantir a segunda dose para pensar na imunidade coletiva. Acho que temos que tomar esses cuidados — afirma Ritter.