O início da vacinação de profissionais da saúde que não tratam diretamente pacientes diagnosticados com coronavírus em cidades gaúchas, na última semana, se tornou um imbróglio ético e jurídico da pandemia no Rio Grande do Sul. Depois da imunização de trabalhadores que atuam em hospitais, postos de saúde e unidades de pronto-atendimento (UPAs) responsáveis por tratar doentes de covid-19, uma pergunta se impôs ao debate público: é ético, a partir de agora, vacinar quem atua em consultório, clínicas privadas ou a domicílio antes da aplicação em idosos?
A discussão se consolidou no Rio Grande do Sul no último sábado (6), quando um mutirão acertado entre a prefeitura de Porto Alegre e entidades de classe vacinou 6.281 profissionais de medicina, odontologia, psicologia, fisioterapia, terapia ocupacional, enfermagem e serviço social. Em seguida, surgiram relatos de vacinados jovens, saudáveis, aposentados, em teletrabalho ou que atuam em consultório.
A polêmica não é só gaúcha: no Brasil inteiro, categorias pressionam governos para receber a vacina em meio à falta de regras estabelecidas nacionalmente. Na Grande São Paulo, por exemplo, 21 das 39 cidades vacinaram biólogos, psicólogos e outros trabalhadores antes de idosos, segundo levantamento do G1. Em Salvador, a vacinação de profissionais da saúde foi suspensa na segunda-feira (8) para usar as doses em idosos, grupo prioritário para o qual já não havia mais injeções.
O debate sobre quem é de fato grupo prioritário ocorre em meio à falta de diretrizes claras por parte do Ministério da Saúde. A pasta aponta, no Plano Nacional de Imunização (PNI), que a preferência deve ser dada a profissionais da saúde, com foco em quem lida com a covid-19, mas sem especificar quem deve ser vacinado após a proteção de quem está na linha de frente.
O PNI explica que são profissionais da saúde médicos, enfermeiros, nutricionistas fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, biólogos, biomédicos, farmacêuticos, odontologistas, fonoaudiólogos, psicólogos, profissionais de educação física, de serviços sociais, médicos veterinários, técnicos e auxiliares de cada categoria, além de funcionários que prestam suporte, como limpeza e segurança.
A falta de critérios para seguir na vacinação acabou na Justiça, com o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinando, após pedido da Rede Sustentabilidade, que a pasta forneça a ordem de vacinação dos trabalhadores da saúde até a próxima segunda-feira (15).
A polêmica se espalhou para o interior do Estado, onde algumas prefeituras imunizaram profissionais jovens e educadores físicos, biólogos e médicos veterinários, como em Alegrete, na Fronteira Oeste. Os conselhos entendem que a expansão da vacinação depende do tamanho de cada cidade – um município menor tem mais chance de imunizar todos os trabalhadores.
Na capital gaúcha, as entidades que representam os profissionais de medicina, enfermagem, odontologia, psicologia, fisioterapia e terapia ocupacional afirmam que foram contatados às pressas pela prefeitura de Porto Alegre para fornecer uma lista de profissionais acima de 60 anos, idosos e/ou com comorbidades que estivessem na ativa e que morassem na Capital.
Em entrevista a GZH, porta-vozes destacaram que a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) definiu os critérios e que não há como checar onde o trabalhador atua e se trabalha presencialmente. Algumas categorias, como as de psicologia e a de fisioterapia e terapia ocupacional, afirmam que a prefeitura lhes reservou menos doses, informação negada pelo Executivo municipal.
— Durante toda a pandemia, a classe que mais óbitos teve e se contaminou foram os profissionais da saúde. Quando tivermos mais profissionais da saúde vacinados, teremos certeza maior de não faltar pessoal para atender à demanda de vacinação e os pacientes internados — afirma o presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Carlos Isaia Filho.
Após as críticas ao mutirão, a prefeitura de Porto Alegre suspendeu, na quarta-feira (10), a aplicação nos profissionais até que o Ministério da Saúde publique as regras dos subgrupos prioritários no setor.
— Se continuarmos achando (os critérios) muito abertos, não vamos aplicar. Ponto. Não vamos permitir que uma pessoa sem necessidades urgentes tome o lugar de alguém que precisa da vacina logo — afirmou o prefeito Sebastião Melo, em entrevista ao colunista Paulo Germano.
A declaração difere da fala do secretário da Saúde de Porto Alegre, Mauro Sparta, que afirmou à reportagem que o número de vacinas para profissionais da saúde e idosos está reservado – e que, portanto, imunizar um grupo não tira doses do outro.
— Vieram 22 mil vacinas para idosos e 12.990 para profissionais da saúde. Elas estão reservadas. A Secretaria Municipal da Saúde quer agir com o máximo de transparência e segurança jurídica. Por isso, suspendemos (a aplicação em profissionais da saúde) até os critérios definidos pelo Ministério da Saúde estarem claros. Enquanto isso, continuamos vacinando os idosos — diz Sparta.
É importante que profissionais da saúde sejam vacinados para voltar ao trabalho da forma mais ideal possível. Isso não quer dizer que devam ser vacinados antes de idosos, que têm grau de risco maior. Mas o cronograma é o gestor da saúde que estabelece
CRISTINA SCHWARZ
Vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia
A vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia (CRP), Cristina Schwarz, destaca que a responsabilidade da vacinação é da prefeitura e que as entidades de classe somente responderam ao pedido do Executivo municipal. Ela explica que o CRP teve reservadas apenas 500 doses (contra 6 mil para médicos), uma quantidade que abrangeria somente psicólogos acima dos 70 anos.
— Quando o secretário fala que o conselho é responsável pela lista, a sociedade entende que fomos responsáveis pelos critérios. Mas só podemos responder ao que o gestor do município solicita. É importante que profissionais da saúde sejam vacinados para voltar ao trabalho da forma mais ideal possível. Isso não quer dizer que devam ser vacinados antes de idosos, que têm grau de risco maior. Mas o cronograma é o gestor da saúde que estabelece. O que me cabe, como gestora de entidade fiscalizadora da profissão, é brigar para que todos os profissionais da saúde e todos tenham direito de se vacinar — afirma a psicóloga.
MP considera que não há fura-fila
O debate motivou o Ministério Público (MP) a se posicionar, em documento de 12 páginas, afirmando que vacinar profissionais da saúde que não estão na linha de frente, incluindo quem trabalha em consultório, antes de idosos está dentro da lei e não constitui fura-fila.
Mas a discussão no campo da ética prossegue. Para os conselhos, vacinar todos os profissionais da saúde assegura que haja pessoas para atender a população e evita que os trabalhadores sejam agentes de infecção.
— De onde parte a contaminação? Prioritariamente da boca, da fala e da gotícula. E é justamente nessa área que o cirurgião-dentista atua, diariamente. Eu estou na clínica, com toda a devida proteção, mas penso: será que é um assintomático? Quem está mais exposto, o idoso que fica todo o tempo em casa ou o cirurgião-dentista que está todos os dias acessando a boca do paciente? — questionou Nelson Elia, presidente do Conselho Regional de Odontologia, em entrevista à Rádio Gaúcha.
A presidente do Conselho Regional de Enfermagem (Coren), Rosangela Gomes Schneider, avalia que se o trabalhador de saúde não estiver vacinado, a população não está segura.
— Somos os profissionais que mais têm morrido por covid porque ficamos 24 horas por dia com o paciente. A enfermagem está dando a vida pelas pessoas. No Brasil, 48 mil profissionais já se infectaram — afirma.
Precisamos de vacinação de nossos profissionais para contribuir com a saúde pública. Mas fazer uso do seu título (para ganhar vacina) é uma questão ética, e aí me refiro a todos os profissionais que fizeram esse uso. É vergonhoso esse comportamento
JADIR CAMARGO LEMOS
Presidente do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional
O argumento é ressoado por Jadir Camargo Lemos, presidente do Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (Crefito), para quem os trabalhadores da área estão sujeitos a ter contato com indivíduos assintomáticos para o coronavírus.
— Nossos trabalhadores podem se tornar um vetor de contaminação. Precisamos de vacinação de nossos profissionais para contribuir com a saúde pública. Mas fazer uso do seu título (para ganhar vacina) é uma questão ética, e aí me refiro a todos os profissionais que fizeram esse uso. É vergonhoso esse comportamento. Não sei se alguém da fisioterapia fez, até o momento não tivemos nenhuma citação — afirma.
A visão de especialistas
Na visão de Dário Pasche, professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um profissional jovem e saudável que se apresenta para a vacinação demonstra a crise ética da sociedade brasileira, sobretudo em um contexto no qual faltam injeções para idosos.
— Profissionais da saúde têm maior risco. Mas tem médico que vai uma vez por semana no hospital, passa o resto da semana no consultório e recebeu vacina. Sabemos que a covid grave e a morte se concentram 90% em pessoas acima dos 60 anos. Por que não vacinar o motorista de ônibus? E, mais grave, como a prefeitura delega para uma associação 2 mil doses, com a tarefa de escolher quem vai se vacinar? — afirma Pasche.
Para o médico pediatra Délio Kipper, coordenador do comitê de Bioética Clínica da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), a vacinação deveria começar pelos profissionais que tratam pacientes com coronavírus, avançar para idosos e só então abranger trabalhadores da saúde que não estão na linha de frente do combate à pandemia.
Obviamente, quem está aposentado, em home office ou não trabalha diretamente com paciente não deveria ter ido fazer vacina. Talvez a pessoa que fez isso não tenha escolhido a profissão correta. Eu acho que essas pessoas deveriam, no mínimo, se sentir envergonhadas
DÉLIO KIPPER
Coordenador do comitê de Bioética Clínica da PUCRS
— Obviamente, quem está aposentado, em home office ou não trabalha diretamente com paciente não deveria ter ido fazer vacina. Talvez a pessoa que fez isso não tenha escolhido a profissão correta. Eu acho que essas pessoas deveriam, no mínimo, se sentir envergonhadas. Mas mais do que isso, não tem o que fazer, porque não é ilegal. Muitos lugares pararam de vacinar os velhinhos porque acabaram as vacinas. Precisa-se fazer uma priorização, de vacinar aqueles que têm maior risco de ter doença grave ou quem sabidamente tem muito contato com o coronavírus. Isso cabe ao responsável pelo PNI, o Ministério da Saúde — afirma Kipper.
GZH contatou o Ministério da Saúda na quinta-feira (11) para esclarecimentos, mas a pasta não se manifestou até a publicação desta reportagem. O conselho de Serviço Social não respondeu ao pedido de entrevista.
Vacinação a conta-gotas
No vácuo, Estados dão um jeito de se organizar. Para colocar ordem na discussão, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) publicou, na tarde de quinta-feira (11), um plano elaborado com o Consems, entidade que representa os secretários municipais de Saúde de cidades gaúchas, no qual detalha 13 grupos subprioritários do setor (veja a seguir). O primeiro é o de aplicadores de injeção e o último, de quem atua na gestão em saúde. Pessoas em teletrabalho não fazem parte da lista.
A diretora do Centro de Vigilância em Saúde da SES, Tani Ranieri, destaca que o Rio Grande do Sul tem poucas doses, que a aplicação é de responsabilidade das prefeituras, que ampliar a faixa de aplicação envolve deter uma grande quantidade de vacinas e que profissionais da saúde em teletrabalho não devem ser imunizados neste momento.
Não podemos fazer mágica se não temos vacina. Infelizmente, o país não tem vacina e faz entregas a conta-gotas
TANI RANIERI
Diretora do Centro de Vigilância em Saúde da SES
— Você precisa ter muita vacina para ampliar a faixa etária com tranquilidade. O Rio Grande do Sul tem pouco mais de 5 milhões de pessoas nos grupos-alvo, mas só recebemos 10% das vacinas necessárias. O Estado está tentando, com o quantitativo que recebe, tão logo atender os idosos. Mas essa queixa da população tem que se referir ao Ministério da Saúde. Não podemos fazer mágica se não temos vacina. Infelizmente, o país não tem vacina e faz entregas a conta-gotas — afirma Tani.
A secretária de Saúde do Rio Grande do Sul, Arita Bergmann, afirmou a GZH durante a semana que “quem não tem contato direto com pessoas não atende aos critérios para ser vacinado”. Questionada se a informação de que os profissionais em teletrabalho não teriam direito à vacina neste momento, ela respondeu:
— O bom senso, a moralidade e a responsabilidade são pré-requisitos da gestão pública. Algumas coisas não precisam necessariamente estar escritas. São compromissos básicos de servir o interesse público em primeiro lugar.
Qual é a ordem de vacinação?
A ordem não detalha os subgrupos por profissão, mas por área de atuação. Entram, portanto, profissionais da saúde, da limpeza e da segurança:
- Vacinadores
- UTI e CTI covid-19
- Unidades de pronto-atendimento (UPA), de Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), incluindo motoristas
- Leitos clínicos para covid-19
- Ambulatórios, postos de saúde ou que prestam atendimento domiciliar para covid-19
- Coletadores de amostra para teste de coronavírus
- Ambulatórios, postos de saúde ou que prestam atendimento domiciliar para pessoas com sintomas respiratórios
- Ambulatórios ou lugares de atendimento a pacientes imunossuprimidos (clínicas de hemodiálise, quimioterapia, radioterapia, oncologia)
- Área não covid-19 de hospitais
- Demais ambulatórios e postos de saúde não focados em covid-19
- Consultórios, laboratórios e farmácias privadas
- Profissionais liberais ou de clínicas que atendem pessoas
- Trabalhadores que não prestam assistência direta à população, como funcionários da Vigilância e Gestão em Saúde.
Fonte: Resolução 25/2021 da Comissão Intergestores Bipartite, formada por Secretaria Estadual da Saúde e prefeituras