Não fosse a pandemia e a dor no quadril que lhe dificulta os movimentos, Maria Elcides Dorneles Costa, 91 anos, sabe bem o que gostaria de estar fazendo: namorando, dançando, viajando, banhando-se nas termas de Iraí, almoçando fora, visitando os filhos. Com a forçosa clausura para se proteger da infecção por coronavírus, a vida, ao longo do último ano, está restrita ao apartamento onde mora sozinha — "eu e Deus" —, em Porto Alegre. Às vezes, um familiar a leva de carro para dar uma volta na quadra.
Na manhã de quarta-feira passada (10), no começo da vacinação contra a covid-19 para nonagenários na Capital, Maria Elcides chegou ao posto de saúde do IAPI de bengala e amparada pela filha Zione Marli Dorneles Costa, 62 anos. A máscara combinava com o colorido vestido. Maria Elcides frisou que o acessório de proteção, em verde, amarelo, roxo e azul, resultara de produção própria:
— Costurei na máquina. Sem óculos! Não uso óculos para nada.
Zione confirmou a boa forma da mãe: depois de um câncer e a retirada do estômago, duas décadas atrás, a idosa goza de ótima saúde. Pressão, colesterol, glicose, tudo em níveis normais.
— Com essa idade e pelo que ela passou, está muito bem. Come de tudo! Carne de porco, carne gorda, carne magra. Se tiver um vinhozinho, ela toma — relatou Zione, técnica em enfermagem aposentada e cuidadora de idosos.
Maria Elcides ensaiou passos de samba após a vacina, lembrando os tempos em que desfilava na ala das baianas no Carnaval.
— Me sinto muito bem. Estou contente. A vacina chegou para nós. Estava demorando — comemorou a ex-funcionária do Hospital Colônia Itapuã, onde trabalhou distribuindo fichas para atendimento no tempo em que o local era referido como "leprosário", acolhendo doentes com hanseníase.
A primeira das duas doses de CoronaVac, imunizante desenvolvido pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo, não significa o retorno de Maria Elcides à vida que provoca tanta saudade, mas é a mais positiva sinalização de esperança recebida até agora. Por enquanto, a viúva, mãe de sete filhos, seguirá mantendo as medidas preventivas.
Duas ou três vezes por dia, Zione, residente em um prédio vizinho, parte para uma averiguação, checando se não há chaleira esquecida sobre o fogão aceso. Uma comunicação peculiar se firmou entre ambas: se uma toalha vermelha é colocada na janela, significa que Maria Elcides está chamando. Zione obedece, atravessa a rua e vai provar um coquetel com cachaça, leite condensado e gemada ou um prato de arroz, feijão e verduras. Boa de cozinha, inclusive despachando encomendas de salgados para clientes, a técnica em enfermagem se resigna com as refeições não muito atraentes da mãe e enfrenta apelos insistentes para levar marmitas.
— Às vezes, ela esquece o sal. Como para agradar — segredou Zione, rindo.
Também na Unidade de Saúde do Iapi, Mário Antônio, 98 anos, e Theresinha de Jesus Bolzoni, 94 anos, imunizaram-se com a dose inicial da vacina contra a covid-19.
— Missão cumprida — anunciou Theresinha, professora de psicologia aposentada.
— A covid não vai nos pegar. Tomar a vacina é uma oportunidade de diminuir riscos e, com isso, os incômodos para a família e a despesa do Estado — complementou.
O casal estava acompanhado de uma cuidadora e de um dos nove filhos, o engenheiro agrônomo Túlio Bolzoni, 59 anos, que gravou o momento em que a seringa picou o braço do pai. O vídeo foi compartilhado no numeroso grupo da família no WhatsApp, que exultou postando figurinhas de aplausos e fogos de artifício.
As numerosas restrições da pandemia alteraram a rotina dos Bolzoni do ano passado para cá. Saídas para almoçar com os filhos, viagens para a Serra e o Litoral e passeios no shopping foram suspensos. Theresinha adorava "olhar as lojinhas", conforme Túlio, entregando que a mãe é econômica e não afeita a grandes gastos. Ela despista:
— Nessa altura da vida, a gente não faz muitas comprinhas porque os roupeiros estão cheios.
Os filhos se revezam nas visitas, repletos de cuidados, para "dar ânimo" ao casal, mas o contato presencial com os 19 netos e nove bisnetos tem sido raro — ainda nem houve oportunidade para conhecer, ao vivo, o mais novo integrante do clã, nascido há poucos meses.
— O pai é muito carinhoso. Quer abraçar, dar beijo, pegar no colo — descreveu Túlio, lamentando a proibição necessária para todos os gestos de carinho que envolvem o toque, aliviada por meio de videochamadas.
Nos planos da família para o futuro, desponta a retomada da convivência, com os típicos encontros realizados em casa.
— Somos muito festeiros. Queremos voltar a ter aglomerações da família inteira — revelou Túlio.
Expressões de alívio e alegria se repetiram em inúmeros locais de vacinação, apesar dos registros de longas filas e falta de estrutura adequada para acolher a parcela mais fragilizada do público-alvo. Na Unidade de Saúde Assis Brasil, no bairro Sarandi, Roselie Corcini Pinto, coordenadora da Atenção Primária da Santa Casa de Porto Alegre e supervisora dos mais de 40 postos de saúde da cidade, atendeu a pedidos de idosos para que os fotografasse com a carteira de vacinação junto ao peito. Alguns choravam depois de ganhar o imunizante.
— Agora dá até para morrer em paz — desabafou uma mulher de 98 anos.
Aos 109 anos, outra paciente encantou a equipe de enfermagem ao questionar quando poderia levar seu filho de 85 anos para tomar a CoronaVac.
Que venham dias melhores
Teresa Janowik, 93 anos, exibia um grampo de cabelo preto com brilhantes que se destacava entre os fios totalmente brancos. Moradora do Rubem Berta, ela passou 2020 preocupada com os necessitados, doando alimentos e produtos de higiene, junto das filhas, para a montagem de cestas básicas. Não suporta ver tanta gente sem fonte de renda.
— Eu vou ficar livre do vírus. É para isso (a vacina), né? É o que estão prometendo — comentou Teresa a caminho da saída, saudando a possibilidade de queda nos índices de desemprego.
Católica, a idosa tem o costume de rezar em dois momentos do dia, ao despertar e antes de dormir. Quando não consegue ficar sentada, deita-se. Pai-Nosso, Ave-Maria, de vez em quando o terço.
— Peço justiça para as pessoas que fazem mal para as outras — destacou a industriária aposentada.
— Que não falte comida para ninguém. Sempre peço para os outros. Para mim, tem.