"Crônica de uma tragédia anunciada": assim foi definida a situação de Manaus por Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Em meados de abril, a capital manauara havia chocado o Brasil ao ter que abrir covas coletivas para enterrar as vítimas do coronavírus. Agora, a cidade amazonense vive uma crise ainda maior. O número de internações quebra recordes diários, foi decretado toque de recolher, os cemitérios estão sem vagas e as unidades de saúde ficaram sem oxigênio na tarde de quinta-feira (14).
Os motivos que levam o Estado nortista a viver essa situação são diversos. Felipe Naveca, pesquisador e vice-diretor de Pesquisa e Inovação do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), afirma que a circunstância não é fruto, exclusivamente, da nova cepa do coronavírus identificada na região.
— Não considero que seja a única responsável porque não temos certeza se essa variante circula no Amazonas em grande quantidade. Precisamos aumentar o número de amostras para ter certeza disso e, consequentemente, ter uma evidência mais forte. Essa situação é multifatorial. Estamos vivendo a temporada de transmissão do vírus respiratório, que, historicamente, acontece de meados de novembro em diante, no inverno amazônico, e vemos a redução da prática do distanciamento social — diz o pesquisador.
Sprinz pontua que era de se esperar que Manaus despontasse como a localidade que poderia entrar em colapso neste segundo momento do recrudescimento no número de casos de covid-19. O motivo é que a primeira onda foi intensa na região e porque houve o surgimento da nova variante da doença em território amazonense.
— Justamente por terem sido os primeiros a serem fortemente afetados, deveria ter sido traçado um plano estratégico de melhor aparelhamento dos hospitais e UTIs para essa região, mas os representantes do povo não se moveram para isso. Houve uma falta de preparo político enorme, falta de preocupação e respeito com as pessoas. O que aconteceu foi um horror. No pulmão do planeta Terra, faltou oxigênio — afirma.
Causas da crise
Paulo Petry, professor de Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), relata que, historicamente, a rede pública de saúde sofre com o processo de sucateamento de postos de saúde e hospitais e que isso tem um impacto direto na qualidade do serviço prestado à população:
— Se a gente acrescenta a esse descaso em relação às instituições de atendimento uma pandemia, os rombos causados pela falta de planejamento afloram. Além disso, pandemia não se combate somente com novos leitos. Se a transmissão for maior do que a capacidade do sistema e de profissionais aptos a prestarem essa assistência, ele vai colapsar. Por isso, deveria ter existido uma campanha forte, em nível nacional, sobre os cuidados em relação a essa doença. Mas o que vimos foi o governo federal menosprezar o vírus, e isso gerou um comportamento inadequado da população.
Um fato que ilustra essa constatação ocorreu em 26 de dezembro do ano passado, quando uma multidão de pessoas se reuniu no centro de Manaus para protestar contra o decreto municipal que proibia a abertura do comércio não essencial por 15 dias. A atitude tinha como objetivo diminuir as internações por covid-19, que já estavam em alta naquela época.
O chefe do Serviço de Infectologia do HCPA destaca ainda que, além da falta de planejamento, outros motivos estão atrelados à situação de caos no sistema de saúde manauara. A média de idade da população local, por exemplo, é mais baixa do que a gaúcha. Logo, era de se esperar que a taxa de letalidade de doença fosse menor em território amazonense, mas não é o que acontece:
— O povo amazonense tem mais comorbidades, aí, tu somas isso à quebra do distanciamento social e temos a combinação perfeita para que a doença seja transmitida e se dissemine com facilidade. Quando essas pessoas procuram por assistência e deparam com uma cidade que não se preocupou com a aquisição de insumos básicos para pacientes covid, a gente só coloca combustível nesse cenário conturbado.
E o Rio Grande do Sul?
Para os especialistas ouvidos pela reportagem, o Rio Grande do Sul e sua capital optaram pelo caminho correto, em março de 2020, quando decidiram implementar medidas rígidas de distanciamento social para tentar conter a curva de transmissão do coronavírus e, assim, ganhar tempo. Entretanto, as recentes decisões de flexibilização adotadas, principalmente em Porto Alegre, preocupam Sprinz.
— A Capital está com ritmo de vida normal, como se não houvesse pandemia, a flexibilização está muito grande, e isso é perigoso — observa.
Petry afirma que, teoricamente, as cenas vistas em Manaus podem se replicar no Estado, mas ele espera que isso não ocorra porque os hospitais gaúchos contam com um sistema de saúde mais robusto:
— Aqui, com a primeira regra de distanciamento mais pesada que tivemos em março passado, conseguimos educar e conscientizar parte da população sobre a pandemia. Soma-se a isso o fato de a nossa rede e serviços de saúde serem bem preparados. Para se ter uma ideia, nossos hospitais de referência têm os mesmos índices de sucesso que os privados. O que pode nos levar ao caos é o descompromisso da população com medidas preconizadas pela ciência. Isso gera acúmulo de demanda, sobrecarga do sistema, queda na qualidade dos atendimentos e óbito de pacientes.
O professor de Epidemiologia da UFRGS diz ainda que, de forma geral, todos os Estados falham na testagem e rastreamento dos positivados. Porém, ele reforça que esse erro cometido pelos manauaras deve ser evitado aqui no Estado.
Questionada sobre como está a infraestrutura dos hospitais para atendimentos de casos de coronavírus, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou, por meio de nota, que o “número total de respiradores à disposição no Estado é de 3.619. Neste momento, 46,2% são utilizados. A compra de oxigênio e demais insumos hospitalares é feita diretamente pelos hospitais, mas o Estado não tem registro de desabastecimento, pois o fornecimento está estável”. A SES reforçou que “de acordo com a secretária da Saúde, Arita Bergmann, o Rio Grande do Sul não corre riscos de ver o cenário de Manaus, no Amazonas, nas suas cidades. Todos os leitos estão equipados com insumos e equipe disponível”.