Enquanto o planeta se preparava para saudar o novo ano, em 31 de dezembro de 2019, a Comissão Municipal de Saúde de Wuhan, na China, divulgava em seu site a ocorrência de casos de uma "pneumonia viral". O escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) no país asiático providenciou a tradução do comunicado para a imprensa e encaminhou a notificação adiante.
A notícia passou a se replicar em todas as direções. Especialistas buscavam informações sobre a doença de "causas desconhecidas". E o que veio na sequência, todos vivenciamos neste 2020 de pandemia de coronavírus.
Desvendar um micro-organismo com potencial de causar enfermidade gravíssima, que se alastra com surpreendente velocidade, se impôs como um desafio descomunal para a comunidade científica. Nunca o conhecimento se provou tão necessário e urgente, à medida em que as linhas representando números de infecções e óbitos disparavam para cima nos gráficos.
São notáveis as descobertas e os avanços alcançados até aqui, mas o Sars-CoV-2, vírus causador da covid-19 — que não é "apenas" uma pneumonia viral, mas uma doença sistêmica, que pode afetar múltiplos órgãos, como se constataria depois —, ainda guarda mistérios.
É necessário compreender melhor os mecanismos de ação do vírus, as variações de impacto no organismo e a duração da imunidade pós-infecção, entre outros pontos, como destacam, nesta reportagem, os médicos infectologistas Estêvão Urbano, diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), e Rodrigo Molina, professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e consultor da SBI.
— Não sabíamos absolutamente nada e fomos tentando descobrir alguma coisa. Os meses foram se passando, a realidade se tornou mais árida do que imaginávamos, mais difícil do que o inicialmente previsto. As mortes sendo contadas em números absurdos. A medicina e a ciência tentando correr atrás para trazer à luz todas as informações sobre o vírus, a doença, o tratamento. Nos surpreendemos a cada dia. Os aprendizados que a pandemia nos trouxe servirão para as próximas gerações — comenta Urbano.
PONTOS EM QUE OS ESTUDOS DEVEM AVANÇAR
Origem do coronavírus
A hipótese mais provável até aqui é de que o coronavírus circulava entre animais e infectou as primeiras pessoas em um mercado de Wuhan, megalópole chinesa considerada o epicentro da pandemia. Após uma mutação, o Sars-CoV-2 se tornou "amigável" para o corpo humano — no pior sentido para nós e no melhor para o micro-organismo.
— O coronavírus começou a conseguir infectar e se multiplicar, o que é muito bom para ele. Provavelmente, uma mutação também possibilitou que se transmitisse com rapidez entre os humanos. Foi uma situação muito vantajosa para o vírus, e tudo ao contrário para os humanos — explica o infectologista Estêvão Urbano.
O diretor da SBI chama a atenção para um debate fundamental, em relação à invasão de outros ecossistemas perpetrada pelo homem e práticas como o consumo da carne de diferentes animais.
— Isso deve ser refletido. Até onde estamos indo e que limites estamos ultrapassando?
Ação do vírus no corpo
Do que se pensava ser uma pneumonia viral, a covid-19 passou a ser entendida como uma doença sistêmica, capaz de afetar múltiplos órgãos além do pulmão. Urbano aponta que a maior gravidade dos quadros tem ligação com a resposta inflamatória do organismo, desencadeada na tentativa de combater o vírus. Essa reação ocorre entre o sétimo e o décimo dia, contados a partir do primeiro dia de manifestação dos sintomas.
— Essa resposta pode ser muito exacerbada e acabar lesando tecidos — detalha o médico.
Sabe-se que pacientes infectados ficam sob maior risco de desenvolver problemas como trombose e embolia pulmonar, mas ainda há muito a ser investigado. Urbano compara as defesas do organismo a um quartel-general com militares de variadas patentes, e ainda não está clara que parte desse sistema tem atuação mais preponderante.
— Quais são os fatores do indivíduo que potencializam ou dificultam essa ação contra o vírus, além das comorbidades? Existe algum fator genético que o torne mais suscetível? Depois que a resposta inflamatória se torna mais intensa, quais mediadores dessa resposta são mais exacerbados? Temos que entender mais a resposta inflamatória como um todo pra saber onde atuar — argumenta o infectologista.
Os conhecimentos na área da fisiopatologia se ampliaram muito, segundo Urbano, mas falta esse detalhamento para que os especialistas consigam apontar armas mais específicas e bem direcionadas.
— A resposta inflamatória não é a mesma para todos os vírus e bactérias. Precisamos descobrir como ela funciona para o coronavírus — acrescenta o médico.
Variações do impacto da doença
É possível que enfermidades crônicas como diabetes, hipertensão e obesidade, chamadas de comorbidades, não só diminuam a capacidade de mobilização do sistema imunológico contra a infecção como também contribuam para a formação de um ambiente propício para o Sars-CoV-2.
— Essas doenças exacerbam a produção de receptores para a entrada do vírus nas células — esclarece Estêvão Urbano.
Indivíduos com doenças respiratórias e comprometimento pulmonar também ficam mais suscetíveis a complicações. Mas que outros motivos explicam o fato de uns adoecerem mais do que outros?
— Como em qualquer doença infecciosa, pode haver algum tipo de predisposição individual, geneticamente determinada, que faz com que algumas pessoas tenham menor capacidade de mobilização das suas defesas para impedir a multiplicação viral. O vírus, então, se multiplica com mais facilidade, e os órgãos são mais invadidos — explana Urbano.
O contrário também é cogitado, segundo o diretor da SBI:
— Uma resposta inflamatória muito exagerada consegue conter a multiplicação viral, mas acaba prejudicando os próprios órgãos.
Imunidade e reinfecção
Estão comprovadas, com base em detidos testes e avaliações, casos de reinfecção por coronavírus, conforme registro de vários países, inclusive no Brasil. Ainda é preciso conhecer melhor a frequência com que isso ocorre. Mas Rodrigo Molina garante:
— Quem já teve covid-19 não tem o passaporte da imunidade.
Pacientes que desenvolvem formas mais leves de covid-19 mobilizam defesas imunológicas que podem sumir mais rapidamente, e os enfermos de maior gravidade tendem a ter, de acordo com o que já foi reportado até aqui, proteção sustentada por mais tempo. Este é, entretanto, um entendimento superficial. Médicos e pesquisadores enfrentam dificuldades para compreender o quanto um adoecimento anterior previne uma reinfecção e como as características individuais também interferem na duração dessa imunidade.
Retomando o exemplo do quartel-general com soldados de distintas patentes para simbolizar o sistema imunológico, Urbano complementa que não se sabe quais desses combatentes são os mais importantes e os menos relevantes na manutenção da imunidade contra o coronavírus.
Sequelas
A infecção por coronavírus pode provocar uma série de sequelas, de diferentes níveis de severidade. Estão diretamente relacionadas ao nível de gravidade da doença no paciente e ao tempo de internação. Quanto maior o período de permanência no hospital, de imobilidade no leito e de entubação (uso de respirador artificial), salienta Molina, piores as consequências.
Há relatos de pessoas que tiveram covid-19 e levaram meses para recuperar o paladar e o olfato, por exemplo. Para outras que também sofreram a perda desses sentidos, a volta à normalidade se deu em dias ou semanas.
— Outras infecções respiratórias podem causar isso, mas é bem menos comum — diz Molina.
Existem sequelas leves, como a fadiga que some depois de um tempo, e gravíssimas, entre elas, disfunções pulmonares e hepáticas. Pelo tempo decorrido até o momento — trata-se de um doença nova —, ainda não é possível relacionar todos os danos possíveis e suas respectivas frequência e duração.
Medicamentos
Nenhum remédio se mostrou realmente efetivo contra a infecção por coronavírus. Com a rápida evolução das investigações científicas, descobriu-se que o corticoide (anti-inflamatório) era capaz de reduzir a mortalidade dos pacientes, mas ainda faltam pesquisas conclusivas a respeito de bons tratamentos, com antivirais ou anti-inflamatórios.
Vacinas
O aporte financeiro e a colaboração internacional entre cientistas foram fundamentais para que se pudesse desenvolver e aplicar vacinas contra a covid-19 no mesmo ano em que o vírus tomou proporções globais. O que acontecerá a partir do esquema vacinal inicial está por ser detalhado.
— Despejou-se dinheiro na vacina, mas o dinheiro não compra tempo. Não sabemos por quanto tempo ela vai proteger o indivíduo. Para a gripe, temos que vacinar anualmente. E para o coronavírus? Não sabemos. Isso o tempo não comprou — reflete Estêvão Urbano.