Saúde

Personagens do momento

Como os infectologistas enfrentam o desafio de suas vidas

Conheça as particularidades e a rotina antes discreta, agora bastante movimentada, dos médicos que estão na linha de frente do combate ao coronavírus

Luiza Piffero

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Isadora Neumann / Agencia RBS
Na pandemia de H1N1, já havia um remédio e a tecnologia da vacina estava adiantada. Com o coronavírus, é diferente. "É o maior desafio que já tive", diz Alexandre Zavascki

Nos últimos dias, só cresce a quantidade de mensagens chegando no celular de Maria Helena Rigatto, 37 anos, professora de infectologia da Escola de Medicina da PUCRS e médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Colegas, pacientes, amigos e familiares se revezam enviando dúvidas, agradecimentos e apoio. O mesmo se repete com outros infectologistas. Eles recebem mensagens que dizem "obrigada por tudo!!!", "espero que você esteja bem", "chegou meu exame de sangue, o que eu faço?".

– O WhatsApp está movimentado. Há muitas situações práticas em que outros médicos e residentes não sabem como proceder – relata Maria Helena, isolada em casa após ter tido contato com um parente diagnosticado com coronavírus.

– Tem gente que manda chocolate, mantra "para limpar as energias", tem até um rapaz do hospital que envia músicas que ele faz – conta Maura Salaroli de Oliveira, 44, gerente da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Sírio-Libanês em São Paulo, epicentro da doença no Brasil.

Maura acrescenta que a atenção também pode ser negativa, com críticas vindas dos colegas "sabe-tudo", ou preconceito da população: 

– Vim de táxi e notei que o taxista botou a máscara. Outra médica já sofreu até bullying de vizinhos que não a queriam no mesmo elevador. Notamos que as pessoas têm receio, mas também vem respeito e orgulho.

Com a chegada da covid-19 ao Brasil, os infectologistas passaram a ser muito mais vistos. Especialistas em doenças infecciosas, são as fontes a quem todos recorrem para entender a pandemia. Mas, desde janeiro, boa parte deles já trabalhava silenciosamente na preparação dos hospitais para o coronavírus.

– Começamos a viver a epidemia antes dos casos chegarem, no fim de janeiro. Era um assunto predominante e vínhamos nos reunindo regularmente com ambulatórios de todo o mundo para discutir os casos, revisando a literatura – conta Maria Helena.

Isolada em casa, com o filho, o marido, a tia e a mãe, a médica tem trabalhado ainda mais do que antes, fazendo reuniões online e supervisionando os residentes de infectologia. A rotina já vinha mudando antes da quarentena:

Maria Helena Rigatto / Acervo Pessoal
Amédica do Hospital de Clínicas Maria Helena Rigatto está de quarentena, mas trabalhando

– Em um dia normal, eu me reunia com os residentes, via os pacientes nos leitos. Mas isso mudou, tivemos de separar uma equipe específica para pacientes de coronavírus, passamos a fazer as reuniões ao ar livre e agora mantemos a maior parte dos contatos online. Também aumentou o número de leitos pelos quais somos responsáveis.

Os infectologistas sabiam que o vírus chegaria no Brasil, pois estudam o comportamento das infecções não só em um indivíduo, mas na sociedade como um todo.

– A lógica das doenças transmissíveis é diferente das não transmissíveis, que é a especialidade da maioria dos médicos. O aspecto social é importante, pois é preciso entender como as doenças se comportam na sociedade para determinar medidas de prevenção e controle – explica Alexandre Zavascki, 45 anos, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor de infectologia da UFRGS.

O médico ressalta que o infectologista não é muito conhecido porque é mais procurado por colegas buscando ajuda na avaliação de doenças infecciosas ou para encaminhar pacientes. A maioria dos pacientes frequentes é portador do vírus HIV, porém, há outras subespecialidades, como as infecções hospitalares – área de Zavascki.

– Coordeno uma equipe de infectologistas, residentes e enfermeiros que fazem parte do controle de infecção, uma área que está trabalhando bastante porque organiza todas as rotinas hospitalares, os fluxos, para atender pacientes com doenças contagiosas – explica o médico.

Essa também é a área de Maura, cuja rotina foi virada do avesso em São Paulo. Até quarta-feira, o Sírio-Libanês havia recebido 200 casos de coronavírus, mas ela estava satisfeita porque apenas três funcionários foram contagiados. Com a experiência de quem já passou pela epidemia do H1N1 e a ameaça do Ebola, a médica tem treinado as equipes para lidar com a covid-19.

Divulgação / Hospital Sírio Libanês
Maura de Oliveira chefia Comissão Controle de Infecção Hospitalar do Sírio-Libanês, em São Paulo

– Sempre estamos alerta, especialmente para as doenças de infecção respiratória que começam fora e vêm para dentro do hospital. Desde meados de janeiro, seguimos de perto as notícias e iniciamos as reuniões, preparando o pronto atendimento, focando em identificar os sintomas. Agora que chegou, trabalhamos com pressão de tudo que é lado, então não é só a parte técnica, mas a emocional também.

Zavascki e Maura protegem os profissionais que estão na linha de frente, entrando em contato direto com pacientes. Por isso, são procurados por todos os setores do hospital em busca de orientações.

– Agora todos checam bem o jeito como usam a máscara. Batemos na tecla da higiene das mãos há anos! Antes, era "lá vem as chatas da infectologia", agora são eles que vêm atrás da gente – diz Maura, bem-humorada.

Segundo Zavascki, os infectologistas enfrentam três desafios no momento: como cuidar do paciente sem um tratamento comprovadamente eficaz, como proteger os profissionais da saúde, considerando a escassez de equipamentos de proteção, e como orientar a sociedade.

–Sem dúvida nenhuma este é o maior desafio que já tive. Na pandemia de H1N1, tínhamos um remédio altamente eficaz e a vacina foi desenvolvida rapidamente, porque já se tinha tecnologia para a vacina do influenza. Agora, o vírus tem alta transmissibilidade e não temos perspectiva de ter vacina até o ano que vem – resume o médico.

Estudo

André Luiz Machado / Acervo Pessoal
André Machado da Silva, do Hospital Conceição: infectologista é movido a curiosidade

Leva-se tempo para se tornar infectologista. Mais precisamente, nove anos – seis na faculdade de Medicina e três na residência, que pode ser estendida por um ano. É comum seguir estudando depois, buscando um mestrado, um doutorado e um pós-doutorado. Para André Luiz Machado da Silva, infectologista do Hospital Conceição, o mais importante é ser um profissional ávido por conhecimento já que é preciso entender não só de um órgão ou sistema, mas de todo o corpo, para tratar de uma meningite (sistema nervoso), pneumonia (pulmão), pielonefrite (rins), erisipelas (pele), endocardite (coração) e outras doenças. 

– Um bom médico deve ser curioso – estabelece Silva.

Ele compartilha um caso ocorrido anos atrás para ilustrar seu lema pessoal de que, na medicina, não se usam as palavras "nunca" e "sempre". Uma jovem portadora de HIV estava internada com complicações no sistema nervoso central, sem perspectivas de melhora.

– Era uma menina que ficou mais de 16 meses internada com dieta por sonda, sem interação. Chegou uma hora em que o hospital não tinha mais o que oferecer, então a equipe de infectologia se mobilizou e comprou cadeira de rodas, agilizou um seguro social pelo INSS e conseguiu uma clínica para ela ter cuidados básicos. Só que, na noite de Natal, ela simplesmente resolveu acordar. Abriu os olhos, e dali começou a melhora clínica que levou à alta. Hoje ela usa cadeira de rodas, mas mantém qualidade de vida levando em consideração que teve uma doença neurológica grave.

O caso é conhecido no hospital como o "milagre de Natal", conta o médico, desculpando-se por conversar com a reportagem às 23h30min de uma terça-feira. É só nesse horário que tem conseguido responder ao turbilhão de perguntas que chegam pelo WhatsApp. 

– Participar de forma ativa como médico infectologista da minha segunda pandemia, sendo a primeira a do H1N1, é desafiador, mas fascinante, porque nos faz esquecer as horas que estamos trabalhando – ressalta o médico. 

Silva é casado e tem um filho pequenos de dois anos. Conta que tem procurado manter a rotina familiar mesmo com a perspectiva do aumento do trabalho.  

– O que mais me deixa ansioso e estressado é não perder o controle em relação a me proteger e orientar os residentes a se proteger, porque a população precisa do nosso trabalho, expertise e atenção.

Zavascki, por sua vez, cumpre expedientes diários de 12 a 14 horas há três semanas. Há pouco tempo para a família e, quando há, é preciso manter distância. Como ele e a ex-mulher trabalham na área da saúde, as filhas gêmeas de 13 anos estão aos cuidados de parentes. 

– Provavelmente quem mais sinta são as filhas, que estão afastadas de mim neste momento, mas a gente sabe que faz parte, e estamos trabalhando para que tudo passe o mais rápido possível – diz.

Motivação

Enquanto toda a população se isola e foge do coronavírus, os infectologistas trabalham em meio a ele. Embora eles e outros profissionais que estão na linha de frente do combate à doença, atendendo em postos de saúde e emergências, precisem ter preparo psicológico para lidar com a situação, não são isentos de medo. Maura tem reparado que, nos treinamentos dados aos colaboradores, a parte emocional tem cada vez mais relevância:

– Tem gente que pergunta se vai ser obrigado a atender, porque tem medo. Muitas vezes nossos treinamentos são só ouvir e acalentar corações, algo que não era uma prerrogativa nossa. Uma das coisas que mais me motivam é colaborar para capacitar quem está na linha de frente.

Na semana que vem, Maria Helena deixa a quarentena e volta para essa linha de frente. 

– Ficar parado é angustiante nessa situação. É uma oportunidade de ser ativo numa situação mundialmente preocupante, foi para isso que nos formamos – ela sentencia.


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