Com a proximidade do fim dos estudos de fase três das vacinas experimentais contra a covid-19, o Brasil se organiza para estruturar como serão feitos o armazenamento e a distribuição de doses nos Estados. No entanto, o Plano Nacional para Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 ainda segue em discussão. Esse planejamento pode ter uma primeira versão finalizada no começo da semana que vem, segundo o jornal O Globo.
Especialistas em vacinação e o próprio Ministério da Saúde já sinalizaram que o país conta com estrutura e experiência para a realização de grandes campanhas de imunização, adquiridas ao longo dos 47 anos do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Há cerca de 35 mil salas de vacinação em todo o território nacional e um bom conhecimento no processo de logística das vacinas. Conforme o ministério, por ano, a pasta distribui mais de 300 milhões de doses de imunizantes para todos os Estados. Essa rede, entretanto, estaria adequada para apenas alguns tipos de produtos que estão em desenvolvimento.
— Sinovac e AstraZeneca/Oxford, por exemplo, não teriam nenhuma questão adicional para a cadeia de frio. Já temos uma malha de armazenamento e distribuição pronta há anos, com profissionais e equipamentos para fazer esse transporte e armazenamento entre 2°C e 8°C. Para essas a gente não precisa fazer nenhuma adequação. Talvez seja necessário aumentar um pouco a área de armazenamento central, alguns equipamentos adicionais para a sala de vacina, mas, a princípio, temos todos os recursos. Agora, se a gente receber uma vacina que tenha armazenamento diferente dessa temperatura, começamos a ter que pensar na reestruturação da rede como um todo — observa Mayra Moura, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
Com a atual infraestrutura, a vacina desenvolvida pela Pfizer/BioNTech teria mais dificuldade para chegar aos brasileiros, pois precisa ser mantida a uma temperatura baixíssima, de -70°C, o que demandaria ultracongeladores que não são uma realidade nas salas de vacinação.
— Esses equipamentos são os que a gente tem em laboratórios superespecializados, são caros, não seria possível distribuir. Mas a Pfizer desenvolveu umas caixas em que coloca gelo seco e chega na temperatura desejada. Essas estruturas podem ter de mil a 5 mil doses de vacina. Fechadas, podem durar até 10 dias e, depois de abertas, cinco. Com certeza isso também coloca um problema de logística. Seria menos complicado nas grandes cidades, mas é um desafio muito grande para o sistema nacional de imunizações — avalia Jorge Kalil, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Para o microbiologista do Instituto de Ciências Biomédicas da USP Luiz Gustavo de Almeida, que é coordenador de projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência, além do custo elevadíssimo desses ultrafreezers, outra desvantagem de vacinas com essa tecnologia é a demora para a importação desses equipamentos para armazenamento:
— Importar em um momento normal levaria seis meses. Agora, após o anúncio da Pfizer, vai ter mais gente querendo. Demoraria mais um período para adaptar algumas cidades para comportá-los. Não vale a pena. Porém, eles podem ser interessantes para a rede privada e para grupos prioritários, como profissionais da saúde, que são menos pessoas. Para a população inteira não funciona — diz Almeida.
Na última semana, o Ministério da Saúde se reuniu com executivos da companhia norte-americana para conhecer os resultados preliminares dos testes e condições de compra e logística oferecidas.
Outro imunizante que está na mira do governo brasileiro é a Sputnik V, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia. Essa vacina, diz Almeida, tem um aspecto interessante que é a possibilidade de liofilização, ou “secagem”, a grosso modo. Essa característica permite que ela seja transportada em temperatura ambiente e hidratada apenas antes da aplicação.
— Seca, ela se mantém estável. A Rússia está testando as duas formas (normal e liofilizada) e, por enquanto, os resultados são iguais — completa o microbiologista.
A reportagem procurou o ministério para tirar dúvidas sobre a questão da organização das vacinas e, por e-mail, a assessoria de imprensa informou que “a distribuição será absorvida pela rede de frio nacional, no formato de campanha, conforme realizado tradicionalmente”. A própria pasta já havia divulgado que “toda a rede de frio do Brasil dispõe de equipamentos para armazenamento de vacinas a -20°C, com exceção da instância local, que são as salas de vacinas e onde o armazenamento se dá na faixa de controle de +2°C a +8°C”.
Distribuição
Na última semana, o Ministério da Saúde anunciou uma parte do Plano de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19. O documento foi elaborado com a participação de representantes de diversas frentes, como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Fiocruz, Instituto Butantan e sociedades médicas, que ajudam a definir os grupos de risco e a estratégia de vacinação.
Mesmo sem bater o martelo sobre quais indivíduos receberão a vacina primeiro, o plano identificou que os grupos com maior risco de adoecimento, agravamento e óbito pela doença são os idosos e pessoas com comorbidades. Os profissionais da saúde também entram nesse rol. A confirmação do público-alvo da campanha, contudo, só deve ser dada após a divulgação dos resultados da fase três dos estudos.
— Só assim conseguiremos avaliar em quais grupos (a vacina) teve maior eficácia — disse, em coletiva de imprensa no último dia 19, o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros.
Na avaliação do microbiologista da USP, o plano já tem aspectos bastante interessantes e sua colocação em prática não deve exigir muito além do que o país já está acostumado a fazer em campanhas tradicionais:
— Temos plenas condições de fazer logística. Nas unidades básicas de saúde, já tem vacinações ao longo do ano. Todo o treinamento a gente já tem. Cadeia de transporte a -20°C também sabemos fazer.
RS em preparação
No âmbito estadual, o governador Eduardo Leite anunciou, na segunda-feira (23), que o Rio Grande do Sul está organizando a logística e locais para armazenamento dos imunizantes, com estrutura adequada de acondicionamento em câmaras frias.
— Tudo para que tenhamos toda a condição de que, assim que elas forem disponibilizadas, possam ser recebidas e ofertadas a todos — garantiu, em live transmitida pelas redes sociais.
A reportagem buscou mais detalhes sobre o planejamento com a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual da Saúde, que encaminhou uma nota: "A secretária da Saúde, Arita Bergmann, e o secretário de Inovação, Ciência e Tecnologia do RS, Luís Lamb, têm uma reunião agendada na semana que vem para aprofundar o assunto. Quanto ao Estado estar preparado, depende do tipo de vacina que será aprovada e adquirida pelo Ministério da Saúde. O RS conta com os cuidados e condições adequadas para a distribuição e armazenagem das vacinas tradicionais já existentes no mercado".
Valores podem variar
Ainda em fase de negociação entre farmacêuticas e governo, o que se sabe é que as vacinas como as da Pfizer e da Moderna são as com valores mais elevados. Cada dose da Pfizer custa em torno de US$ 20 (cerca de R$ 107). Por outro lado, a dose da AstraZeneca teria custo de US$ 3,5 (aproximadamente R$ 18) e a da Sputnik V custaria menos de US$ 10 (abaixo de R$ 53). Todas precisam de duas doses.
— Valor é importante, mas, por outro lado, se a vacina for muito boa e permitir que se retomem as atividades econômicas, ela se paga. Mas, sem dúvida, seria melhor uma vacina mais barata — finaliza Kalil.