Transformada em disputa política entre países mundo afora, a corrida pela descoberta de uma vacina eficiente e segura contra o coronavírus intensificou-se nesta semana. Menos de um mês após a Rússia anunciar o registro de uma substância, os Estados Unidos comunicaram às autoridades de saúde que se preparem para a aplicação de doses entre o final de outubro e o início de novembro.
Na prática, contudo, nenhuma das candidatas que estão sendo pesquisadas concluiu a terceira fase de testes, a última antes da aprovação pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e da liberação pelas agências regulatórias nacionais. A substância russa, por exemplo, recém ingressou na etapa final de estudo, enquanto os norte-americanos sequer informaram qual vacina será distribuída à população.
— Neste momento, há uma questão muito importante, que é a política e o nacionalismo. Para alguns países, é muito importante serem os primeiros a ganharem essa corrida. Mas, apesar disso, nunca antes na história uma vacina foi desenvolvida em tão pouco tempo — sublinha Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
De acordo com o mais recente relatório da OMS, publicado nesta quinta-feira (3), há 176 pesquisas de candidatas a vacinas em desenvolvimento — 34 estão realizando ensaios clínicos, ou seja, aplicando testes em humanos. Nove encontram-se na última fase de estudos e, por isso, são consideradas as mais adiantadas pela comunidade científica internacional.
Destas, ao menos sete, segundo a OMS, preveem serem necessárias duas doses para assegurar a resposta imunológica do organismo. Embora possam se demonstrar mais eficientes, tendem a impor, se aprovadas, dificuldades logísticas, especialmente em um país de dimensões continentais como o Brasil, e de insumos.
— Duas doses não são ideais por causa do custo e da logística, mas não acredito que serão um impedimento para a campanha vacinal no Brasil. Estudos mostram que a primeira dose é capaz de provocar uma resposta imune, mas não de sustentá-la — diz a infectologista Ana Paula Veiga, responsável pelo ensaio clínico da vacina Coronavac no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo.
Ainda há, no campo científico, mais dúvidas do que respostas sobre a imunização contra a covid-19. As candidatas que estão sendo investigadas usam diferentes métodos — desde a tradicional técnica de vírus inativado até a inédita de RNA mensageiro.
Em resumo, segundo o professor da Unicamp, a vacina colocará um material estranho no organismo que fará com que o sistema imune o reconheça como um corpo estranho similar ao vírus. A partir disso, o organismo produzirá anticorpos neutralizantes (que impedem o vírus de entrar nas células) ou células citotóxicas (que destroem as células do corpo contaminadas pelo coronavírus) – na melhor das hipóteses, causará as duas reações.
— Apenas os resultados da fase três dirão se a vacina irá transformar a covid-19 em uma doença mais amena ou se realmente impedirá o vírus de entrar no organismo. Até agora, não temos estas respostas para nenhuma das candidatas — acrescenta Dias.
Além disso, o método adotado também terá impactos diretos no sucesso de uma campanha de vacinação em território nacional. O Brasil acumula experiência na produção de doses de vírus inativado, mas nunca produziu uma substância de RNA mensageiro, utilizado nas candidatas da Pfizer e da Moderna, entre outras.
— Esse fator que dificultaria, no Brasil, a produção em grande quantidade. Já a técnica de vírus inativado, pela expertise, nos anima bastante. Teríamos capacidade de produção em larga escala — afirma Ana Paula.
O que se sabe sobre as nove vacinas que estão na fase três de testes
Fabricante: AstraZeneca (Reino Unido e Suécia) e Universidade de Oxford (Reino Unido)
- Tipo de vacina: vetor viral não replicante
- Número de doses: 1
- Previsão de conclusão da pesquisa: julho de 2021
É baseada em um adenovírus de chimpanzé que causa resfriado, sendo geneticamente modificado para ser mais fraco e incapaz de se replicar no organismo. Nas etapas um e dois, mostrou-se segura, porque não causou efeitos colaterais graves, e eficiente, levando à produção de anticorpos.
Atualmente, o terceiro estágio da pesquisa está em desenvolvimento em cinco países – Brasil, África do Sul, Estados Unidos, Inglaterra e Índia. No Brasil, o estudo é coordenado pela Universidade Federal de São Paulo, e os testes são realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Em agosto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a mudança no protocolo do ensaio clínico, aprovando a administração de uma dose de reforço para os voluntários e a ampliação da faixa etária para a realização dos testes.
Pouco antes, em junho, o Ministério da Saúde aderiu a um acordo de cooperação para desenvolvimento e acesso a esta vacina. Por R$ 1,9 bilhão haverá, segundo a parceria, 100 milhões de doses à disposição dos brasileiros, produzidas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A AstraZeneca e a Universidade de Oxford anunciaram que, caso os resultados positivos se confirmem, será possível fornecer doses emergenciais a partir de outubro. Já o ministério dará início à produção da substância em dezembro.
Segundo o pesquisador da Unicamp, trata-se de uma tecnologia nova, que se utiliza um vírus vivo e pode oferecer melhor eficácia, estimulando mais o sistema imune. O processo de fabricação também seria, em tese, mais simples, porque não envolve o vírus causador da covid-19 – entretanto, ainda não há nenhuma vacina com esta plataforma em uso em humanos.
Fabricante: Sinovac Biotech (China)
- Tipo de vacina: vírus inativado
- Número de doses: 2 (intervalo de 14 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: outubro de 2021
Batizada de "vacina chinesa", a candidata chama-se Coronavac e demonstrou resultados satisfatórios nas fases um e dois, sem causar adversidades graves e produzindo resposta imunológica em seus voluntários. A etapa final de testes está sendo feita no Brasil, em parceria com o Instituto Butantan, e na Indonésia. No Brasil, são 12 centros de pesquisa – entre eles, o Hospital São Lucas da PUCRS – e 9 mil voluntários.
O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, aposta na possibilidade de fornecer 45 milhões de doses para o Sistema Único de Saúde (SUS) até dezembro deste ano. Dimas também disse que conta com a Anvisa para acelerar a burocracia, disponibilizando a vacina em larga escala no início de 2021.
No último final de semana, a agência de notícias Reuters revelou que a Coronavac teve uso emergencial aprovado na China para vacinar grupos de pessoas consideradas de alto risco para a covid-19, como médicos. Por usar uma tecnologia considerada tradicional, mas que passa pela manipulação do coronavírus, necessitaria de um nível de biosseguraça elevado em sua fabricação.
Fabricante: Sinopharm (China) e Wuhan Institute of Biological Products (China)
- Tipo de vacina: vírus inativado
- Número de doses: 2 (intervalo de 14 ou 21 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: julho de 2021
Também chinesa, esta candidata produziu anticorpos em seus voluntários nos ensaios clínicos das fases um e dois, sendo que alguns participantes sentiram febre e outros efeitos colaterais, embora sem gravidade. Em julho, os laboratórios deram início à última etapa de pesquisa, aplicando a substância em voluntários dos Emirados Árabes, do Peru e do Marrocos.
Neste mês, a Sinopharm, que é uma estatal chinesa, informou que a vacina poderá estar concluída para uso no final de 2020. A substância utiliza um método usual de imunização, de vírus inativado, a fim de causar uma resposta imune no organismo.
Fabricante: Sinopharm (China) e Beijing Institute of Biological Products (China)
- Tipo de vacina: vírus inativado
- Número de doses: 2 (intervalo de 14 ou 21 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: julho de 2021
Em outra frente, a Sinopharm está desenvolvendo uma segunda vacina de vírus inativado, desta vez, em parceria com o Instituto de Produtos Biológicos de Pequim. A terceira fase de testes ocorre nos Emirados Árabes.
No Brasil, o governo do Paraná anunciou um acordo para testagem e produção da vacina, sob comando do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar). O termo foi assinado no final de julho, e há expectativa de largada nos testes ainda em agosto.
Fabricante: Moderna (Estados Unidos)
- Tipo de vacina: RNA
- Número de doses: 2 (intervalo de 28 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: Outubro de 2021
O laboratório norte-americano trabalha com uma tecnologia genética inédita, baseada em RNA mensageiro. Esta pesquisa tem o financiamento do governo dos Estados Unidos, de quase US$ 1 bilhão.
Inicialmente, a Moderna constatou que a substância protegeu macacos contra o coronavírus. Depois, em março, deu início aos testes em humanos. Esta testagem está sendo andamento nos Estados Unidos, em 30 mil voluntários.
Antecipando-se, caso a vacina se demonstre segura e eficiente, o governo norte-americano concedeu um adicional de US$ 1,5 bilhão à Moderna, em troca de 100 milhões de doses para a sua população.
A plataforma de RNA mensageiro induz as células humanas, de acordo com o professor da Unicamp, a produzirem proteínas que imitam o coronavírus, sendo reconhecidas como intrusas e gerando uma resposta imunológica. Trata-se de uma técnica sensível que necessita de armazenamento em baixíssimas temperaturas – por isso, requer uma logística mais complexa para a imunização.
Fabricante: BioNTech (Alemanha), Pfizer (Estados Unidos) e Fosun Pharma (China)
- Tipo de vacina: RNA
- Número de doses: 2 (intervalo de 28 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: Janeiro de 2023
Também usando RNA mensageiro, esta candidata, conhecida como vacina da Pfizer, levou à produção de anticorpos contra a covid-19 em seus estudos de fase um e dois, além das chamadas células citotóxicas. O terceiro estágio desta pesquisa envolve 30 mil voluntários em uma série de países, incluindo Brasil, Argentina e Estados Unidos.
A testagem em mil brasileiros começou no início de agosto. Diferentemente de outros ensaios clínicos, este permitiu que pessoas de quaisquer áreas de atuação – desde que expostas ao vírus – participem da testagem, nas cidades de São Paulo e Salvador.
No campo internacional, o governo dos Estados Unidos firmou um contrato de US$ 1,9 bilhão para a compra de 100 milhões de doses, a serem entregues até dezembro, e a eventual aquisição de mais 500 milhões de doses. Já o Japão fechou um acordo para 120 milhões de doses. Segundo a Pfizer, se a vacina obter aprovação regulatória, espera-se fabricar 1,3 bilhão de doses até o final de 2021.
Fabricante: Janssen Pharmaceutical Companies (Bélgica)
- Tipo de vacina: vetor viral não replicante
- Número de doses: 2 (intervalo de 56 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: novembro de 2023
Depois do desenvolvimento, há uma década, de vacinas a partir de um adenovírus contra a ebola e outras doenças, a Johnson & Johnson, controladora da Janssen, está testando o mesmo método para um candidata contra a covid-19. O laboratório recebeu US$ 456 milhões do governo norte-americano para apoio à pesquisa.
A terceira fase de testes acontecerá na América Latina, incluindo o Brasil. A Anvisa aprovou, em 18 de agosto, os testes da vacina, prevendo a participação de 7 mil voluntários em São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Norte.
Há previsão de início do ensaio clínico no país ainda em setembro.
Fabricante: Gamaleya Research Institute (Rússia)
- Tipo de vacina: vetor viral não replicante
- Número de doses: 2 (intervalo de 21 dias)
- Previsão de conclusão da pesquisa: maio de 2021
Duas semanas após o anúncio de sua vacina contra o coronavírus, a Rússia, por meio do Instituto Gamaleya de Epidemiologia e Microbiologia, entrou na última fase de seus ensaios clínicos, de acordo com a OMS. Segundo o presidente russo, Vladimir Putin, a imunização, que despertou desconfiança da comunidade científica pela rapidez dos estudos e falta de transparência, é segura e eficaz.
O método consiste na combinação de adenovírus desenvolvidos a partir de um gene do coronavírus, que ajudariam o sistema imunológico a produzir anticorpos contra a infecção. A Rússia afirma que pretende dar início à produção até o final do ano – a vacinação, agora, começou por profissionais de saúde. A candidata foi batizada de Sputnik V.
No Brasil, o governo do Paraná anunciou que fará testes da vacina russa. Na semana passada, o Estado informou que deverá submeter à Anvisa em até 30 dias o protocolo de validação para a testagem, que deve ter início após mais 15 dias. Deverão participar no mínimo 10 mil pessoas no Brasil, com prioridade para profissionais de saúde.
Nesta sexta-feira (4), o Gamaleya publicou os resultados da primeira e da segunda etapa de seus testes na revista científica The Lancet. Os dados preliminares colhidos de 76 voluntários apontam que a candidata é segura e induziu imunidade no organismo, a partir da produção de anticorpos e resposta celular.
Fabricante: CanSino Biologics (China) e Beijing Institute of Biotechnology (China)
- Tipo de vacina: vetor viral não replicante
- Número de doses: 1
- Previsão de conclusão da pesquisa: janeiro de 2022
Também chinesa, a candidata à vacina da empresa Cansino é outra baseada em adenovírus – um vírus enfraquecido que causa gripe comum em humanos, seguindo uma metodologia semelhante à vacina russa. Resultados promissores das fases um e dois demonstraram que a substância produziu resposta imunológica contra o coronavírus, embora mais modesta em idosos.
Em junho, em um fato inédito, a China aprovou a vacina para uso entre seus militares. Já em agosto, a Arábia Saudita e o Paquistão comunicaram que farão os ensaios do último estágio da candidata.