A notícia de que a Rússia registrou a primeira vacina contra a covid-19 virou o assunto da manhã desta terça-feira (11) em todo o mundo. Batizado de Sputnik V, o imunizante russo ainda não foi submetido à fase 3 de testes em humanos, na qual um grande número de pessoas recebe as doses para testar sua segurança e eficácia. Ainda assim, Kirill Dmitriev, chefe do Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), garantiu que a imunização em massa no país inicia em outubro.
Em entrevista ao Gaúcha Atualidade, o médico Luciano Goldani, infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), disse que a notícia gera questionamentos:
— É muito estranho, pois sabemos que as vacinas precisam seguir as fases 1, 2 e 3 para seu desenvolvimento. E a Rússia está autorizando sem ter realizado a fase 3, que é a final e demanda muito tempo.
Mayra Moura, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), observa que uma das grandes dúvidas que paira é como a Rússia conduziu os estudos até chegar ao registro. Segundo ela, há normas internacionais que devem ser seguidas ao realizar ensaios clínicos.
— Essas regras foram necessárias após a Segunda Guerra Mundial, quando aconteceram atrocidades. Os nazistas testavam coisas absurdas. Foram criadas normas que chamamos de boas práticas clínicas, que são seguidas no mundo inteiro. Tem que respeitar esses princípios para que os resultados sejam confiáveis e comparáveis — detalha.
— Quando a gente recebe a notícia de que um país como a Rússia, que não publicou estudo nenhum, que não tem demonstrado nenhum dado, registrou a vacina, o mínimo, é questionar a eficácia e a segurança — completa Mayra.
Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do HCPA, também reforça o coro da falta de informações sobre o imunizante russo. Segundo ele, por ora, só se ouviu falar sobre testes em laboratório, seguidos de testes em voluntários, que teriam induzido a produção de anticorpos e teriam segurança.
— É o que sei. A gente tem conhecimento para fazer vacina contra o coronavírus, pois há vacinas para gatos e cachorros. Isso nos dá a ideia de que, certamente, eles pularam etapas. Não estão preocupados em fazer ciência. É uma fase que todos estão seguindo e eles pularam.
Registro antecedeu fase 3
De acordo com a agência de notícias russa Interfax, a partir do registro, o imunizante será levado para a terceira e última fase de testes, a ser conduzida em países como Emirados Árabes e Arábia Saudita, por exemplo. Para Mayra, isso não condiz com as normas internacionais para regulamentação de um produto, que ocorre, apenas, ao término da fase 3.
— Pode-se, sim, fazer uma fase 4, que é um acompanhamento ativo da vacina após o registro. Também é possível conduzir um estudo 2/3, que tem cara de dois e de três. Mesmo assim, depois, normalmente, se faz um estudo de fase 3 para registrar o produto. A grande questão dessa vacina é que não podemos dizer que não funciona, mas não podemos afirmar que funciona, pois, a comunidade científica não tem acesso aos resultados desses estudos.
Se dizendo surpreso com o registro russo, Sprinz defende que se cumpram todos os processos que norteiam a ciência para aprovar um imunizante. Sem isso, diz, é pouco provável que órgãos reguladores, como o norte-americano Food and Drug Administration (FDA, similar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil) validem as doses.