Na corrida pela vacina contra o coronavírus, há três dimensões com velocidades e interesses distintos: a humanidade, ansiosa por uma imunização contra a doença, venha de onde vier; a Organização Mundial da Saúde (OMS), preocupada em fazer com que laboratórios e países respeitem as diretrizes para que a substância seja eficaz e segura; e a Rússia, interessada politicamente no pioneirismo de uma eventual descoberta.
- Esta manhã, pela primeira vez no mundo, uma vacina contra o novo coronavírus foi registrada - disse o presidente Putin, em videoconferência com integrantes do governo, exibida pela TV, nesta terça-feira (11).
Na prática, Putin se autoproclama o vencedor da corrida. A primeira e tão esperava imunização contra a covid-19 estaria pronta, seria eficaz e tão segura que, inclusive, uma de suas filhas teria recebido uma dose.
Não é bem assim.
Escrevi dias atrás que é necessário ficar com os dois pés atrás com relação aos anúncios russos, embora eu deseje fortemente estar errado (e que a vacina, de fato, tenha sido desenvolvida pelo Kremlin e seja eficaz e segura). O problema é que há vários indícios para se acreditar que os protocolos estão sendo atropelados em Moscou em nome da liderança da disputa global pela imunização.
A vacina russa vem sendo desenvolvida pelo Centro Nacional de Investigação de Epidemiologia e Microbiologia, Instituto Gamaleya, junto com o Ministério da Defesa. Tudo indica que as fases 2 (resposta imunológica) e 3 (eficácia) foram realizadas em paralelo. Tudo a toque de caixa.
A grande questão é: por que, se concluiu as etapas, a Rússia ou seus pesquisadores não divulgam evidências científicas que confirmem a eficácia e segurança da vacina? Mais: é de praxe na comunidade científica internacional que estudiosos publiquem suas descobertas em uma revista acadêmica. Os estudos de Oxford, cujo produto está sendo testado no Brasil, foram publicados em The Lancet, por exemplo, a principal revista médica do mundo. O que os russos temem?
Putin tem pressa. Faz da disputa pela vacina uma reedição da corrida espacial, durante a Guerra Fria. Prova disso são as referências à Sputnik, o primeiro satélite lançado em órbita no mundo, nos anos 1950. Seus ministros se referem ao feito com frequência, e o próprio nome da vacina será Sputnik V para mercados externos, segundo afirmou o CEO do Fundo de Investimentos Diretos da Rússia (RDIF), que financia as pesquisas.
Chegar à vacina antes de todos dá a Putin o poder de usar o feito como propaganda do país, recoloca a nação, depois de décadas na periferia global, na vanguarda das descobertas científicas. Então, por que, se pretende ser um novo player do sistema internacional, o Kremlin não é transparente a fim de garantir o reconhecimento de seus pares - e, especialmente, de seus adversários?
É muito provável que a política esteja acima da ciência nesse caso. Em abril, Putin deu instruções aos pesquisadores para simplificar e encurtar os prazos para os ensaios. Um mês depois, os próprios cientistas do instituto foram inoculados com a vacina, quando o produto experimental ainda era testado em animais, o que viola um dos princípios básicos da ciência.
Ora, a Rússia não obedece à lógica ocidental liberal. Ainda que integre organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a OMS, o país costuma tomar decisões e empreendê-las de forma unilateral - aliás, como os Estados Unidos também o fazem, no caso militar. Assim, o governo russo pode, simplesmente, fazer valer sua vacina para uso doméstico, mesmo que não seja recomendada pela OMS ou agências estatais, com a Food and Drug Administration (FDA, americana).
Putin paga para ver. Até porque, na prática, ele dobrou a aposta e se autoproclamou o vencedor. Precisa, agora, do reconhecimento do mundo: apresentar dados científicos para revisão urgente de cientistas isentos sob pena de, exatos 20 anos depois da tragédia com o submarino Kursk, a serem lembrados nesta quarta-feira (12), um falso anúncio virar um novo fiasco internacional.