Compartilho, obviamente, do desejo e da ansiedade de todos para que se descubra o mais rápido possível uma vacina contra o coronavírus, mas é preciso ficar com os dois pés atrás com a notícia de que a Rússia estaria prestes a aprovar o produto. Há dúvidas sobre eficácia, segurança e processos de desenvolvimento da imunização do Instituto Gamaleya, órgão estatal com sede em Moscou, que prevê a substância para agosto.
Some-se essas questões à tradicional falta de transparência russa ao lidar com assuntos sensíveis, ao fato de que o centro de pesquisas é ligado ao Kremlin, o que pode sugerir pressão para acelerar os processos não só porque o país tem alto número de casos (ocupa o quarto lugar no infame ranking mundial), mas porque uma vacina projeta a nação como potência científica global, e à ausência de artigos científicos a respeito das pesquisas, há razões de sobra para ceticismo.
Mais do que uma disputa entre laboratórios para se chegar à vacina, há uma batalha geopolítica em torno do imunizante, que opõe atores gigantes do tabuleiro internacional como EUA, Reino Unido, China, França, Israel - e, correndo por fora, Rússia, África do Sul e Nigéria.
A frase do chefe do serviço de imprensa do Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), Kirill Dmitriev, na terça-feira (28), que comparou o suposto sucesso no desenvolvimento da vacina ao lançamento do Sputnik 1 pela antiga União Soviética, em 1957, dá ares de Guerra Fria à busca.
À época, o mundo vivia a bipolaridade da disputa por hegemonia do planeta entre Estados Unidos e seus aliados e o bloco soviético. As áreas científica-tecnológica-espacial eram campos de batalha. Entre 1955 e 1975, as duas superpotências empreenderam uma corrida espacial, que ora colocava uma ora outra à frente. Os americanos enviaram moscas ao espaço, em 1947, os soviéticos mandaram a cadela Laika, 10 anos depois. Em seguida, projetaram Sputnik 1, o primeiro satélite do mundo, respondido pelos americanos com o Explorer I. Em 1961, o cosmonauta russo Iuri Gagarin foi o primeiro homem a viajar pelo espaço e dizer que a Terra é azul. Em 1969, os americanos chegaram à Lua, cereja do bolo da aventura.
Com o fim da URSS, o país mergulhou em uma década perdida - do ponto de vista econômico, social e geopolítico. Afinal, o bloco soviético se esfacelara, e os EUA consolidavam seu poder como única superpotência planetária. Mas, a partir do século 21, com Vladimir Putin como líder incontestável há duas décadas no Kremlin, a Rússia tem dado sucessivos passos rumo à expansão econômica e militar. Os padrões de vida para a maioria da população melhoraram, e um senso de estabilidade e orgulho nacional reemergiram. O preço é a erosão da democracia. Mas este é outro assunto.
Com mão de ferro e ares de czar, Putin tem incorporado o líder que pretende restabelecer o país como potência global. Por isso, em termos geopolíticos (a despeito do ceticismo científico), não seria de se estranhar que possa haver pressão sobre os organismos de Estado e pesquisa para que se desenvolva uma vacina. A Rússia tem exercido forte antagonismo em relação ao Ocidente. Um dos grandes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o país exerce influência em assuntos do Oriente Médio (praticamente pacificou a Síria e trouxe para seu lado a Turquia), é fiel da balança, junto com a China, da Coreia do Norte, arrancou um naco de terra da Ucrânia (Crimeia), sob silêncio do mundo, e dá demonstrações frequentes de força no Ártico e no Mar Negro, zonas estratégicas do globo. No campo civil, a Copa do Mundo de 2018 foi a grande vitrine dessa nova roupagem do urso.
A Rússia está decidida a reocupar seu lugar na História e vê na corrida pela vacina a grande janela de oportunidade.