Medo e incerteza se tornaram palavras recorrentes no vocabulário de todos depois da disseminação do coronavírus. Das dúvidas mais corriqueiras, sobre quando tudo isso vai acabar, até as mais dramáticas, que se preocupam com o que será colocado no prato na próxima refeição, o cenário da pandemia traz uma pilha de interrogações.
Assim como a população em geral, quem está na linha de frente encontra dificuldades, tem dilemas e angústias. Precisa lidar com todo esse turbilhão enquanto assiste os pacientes. Foi pensando em ajudar justamente esses profissionais da saúde que nasceu, no início de março, o projeto Agir Para Salvar Vidas, encabeçado pelo CCM Group. A ideia é conectar, gratuitamente, profissionais que atuam no combate à covid-19 com voluntários da área da saúde mental, como psicólogos e psiquiatras.
Especializada na realização de congressos médicos, a empresa tomou a decisão de adiar seus eventos antes mesmo de uma determinação do governo. Ao mesmo tempo, mobilizou-se para viabilizar formas de ajudar nesse momento.
— Não poderíamos deixar que nossos congressos colocassem a saúde em risco. Agir para salvar vidas á algo que a gente acredita. Vivemos um grande estresse, mas pensamos: já temos conhecimento e uma rede de profissionais conhecidos. Nosso lema é conectar pessoas e conhecimentos que salvam vidas, então, o que fazer para contribuir?— diz Eduardo Corrêa da Silva, sócio-fundador do CCM Group, explicando como chegaram à plataforma de atendimento.
Desde a criação do site, já são mais de 900 psicólogos e psiquiatras cadastrados em todo o país para atender, por ferramentas online, médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e demais profissionais diretamente ligados à pandemia. Até o momento, a plataforma já viabilizou quase 400 conexões e tem capacidade para crescer mais.
A reportagem conversou com alguns desses profissionais da saúde mental para entender os diferentes cenários e preocupações daqueles que atuam na linha de frente contra o coronavírus. Confira:
Insegurança e revolta
Era 27 de março quando a técnica em enfermagem baiana iniciou o acompanhamento remoto com a psicóloga voluntária Luciana Schermann Azambuja, de Porto Alegre. Naquele momento, as angústias da profissional que atuava em um ambulatório de obstetrícia eram com o cenário que estava por vir.
Ansiosa e com medo do futuro que se aproximava, ela dividiu seus dilemas com a profissional gaúcha. Dentre eles, a questão de ser transferida do posto de trabalho para uma unidade de saúde maior, especificamente para lidar com os pacientes de coronavírus.
— O primeiro encontro foi bem a transição da ameaça para a ameaça real. Ela estava fantasiando muito em relação a isso. Muitos medos — relembra a psicóloga.
Em seguida, a técnica foi, de fato, encaminhada para um grande hospital da capital baiana, onde começou a atuar na vigilância epidemiológica, respondendo pela verificação de casos confirmados, suspeitos e evolução dos quadros.
— Ela estava mais ansiosa antes do que lá dentro — fala Luciana.
Por sorte, a ansiedade que precedeu a transferência foi amenizada com boas notícias. O medo de que faltassem equipamentos de proteção individual (EPI) não se tornou realidade, o que garantiu um pouco mais de tranquilidade à baiana. Por outro lado, a preocupação com a família, que mora no interior, aflige: os pais vivem em um município onde as orientações para o distanciamento social não estão sendo cumpridas à risca, colocando em perigo o sistema de saúde local.
— Os pais dela não saem, mas ela se preocupa — diz Luciana.
Com encontros semanais, sempre às quartas-feiras à noite, quando a técnica chega do hospital, as conversas duram entre 45 e 60 minutos e trazem temas diversos. Agora, por exemplo, a baiana divide com a psicóloga gaúcha a revolta em relação às pessoas que descumprem as recomendações para permanecerem em casa.
— Um dos hobbies dela era caminhar no calçadão. Mas agora, a saída é para ir trabalhar. Ela fica revoltada com as pessoas que não fazem isso.
Também pesam nas sessões a sobrecarga de trabalho, provocada, geralmente, pelo afastamento de colegas com sintomas da covid-19. Conforme a psicóloga, a paciente relata que boa parte dos atendimentos feitos na emergência do hospital são dos próprios colegas, que precisam deixar o trabalho por uma semana.
Motivada a ajudar com as ferramentas que disponibiliza, a gaúcha conta que as sessões são mais em tom de conversa, na qual ela oferece seu tempo para escutar os dilemas da profissional nordestina.
— É apenas uma escuta, mas isso é importante para eles. Estão isolados da família, os amigos fazem deles porta-vozes das notícias do hospital, os colegas só falam disso — avalia Luciana.
Medo é real
Acostumada a atender pacientes por meios online, a psicóloga clínica Karine Paiva Muller não pestanejou ao se inscrever na plataforma. Conhecendo a realidade dos hospitais, ela estava ciente da importância do seu trabalho nesse momento e, especialmente, direcionada a esses profissionais.
— Vejo que a angústia deles é pelo medo do desconhecido, pela falta de material e por ser uma doença que mata.
Na quarta-feira passada, começou a atender uma técnica em enfermagem que trabalha em Porto Alegre. Solteira, sem filhos, na faixa entre 20 e 30 anos, a jovem vive com família, o que aumenta o temor de uma contaminação.
— Ela vive a ansiedade e a angústia de ser contaminada por uma doença nova. Faltam equipamentos de proteção individual. As pessoas dizem que não, mas é real: não tem suficiente. O medo de levar a doença para casa é real — descreve a psicóloga.
Durante os 50 minutos da videochamada, Karine ajudou a técnica a lidar com os sentimentos atuais, além de lhe ensinar métodos de relaxamento.
— Esse primeiro encontro foi de acolhimento, foi para explicar as técnicas que uso de relaxamento para que, quando a ansiedade aumentar, ela consiga identificar antes e buscar relaxar.
Uma segunda sessão entre as duas estava marcada para esta quarta-feira (15) pela manhã.
Desafio familiar
Com uma pandemia na "bagagem", a psiquiatra Carolina Torronteguy já sentiu na pele o que os colegas vivem hoje. Em 2009, durante a disseminação do H1N1, ela trabalhava como emergencista na Grande Porto Alegre e presenciou dilemas semelhantes aos atuais: emergências lotadas, falta de leitos e de EPIs. À época, atuando na linha de frente, ela chegou a contrair o vírus. Apesar dos cenários parecidos, a crise do H1N1 tinha um grande diferencial: havia uma medicação para tratar os doentes.
— A gente sabia que o Tamiflu funcionava. Hoje, é uma incerteza. O fato de eu já ter passado por isso faz com que eu saiba o que o outro está passando. Deve estar muito difícil.
O convite para atuar como voluntária veio de um professor de um grupo de estudos do qual participa. Como já vivenciou uma situação semelhante, fez sua inscrição e logo atendeu um paciente que trabalha no front (a médica preferiu não detalhar a profissão da pessoa) e tinha como maior preocupação se tornar um vetor do vírus, contaminando os pais idosos, com quem mora.
— Esse paciente estava em sofrimento, muito angustiado. Tomava medidas para arrumar uma parte da casa para colocar os itens que vêm da rua, manter a distância dos idosos. Mesmo assim ficava com receio de, em algum momento, esquecer de algo. Conversei com outros colegas que também fizeram atendimentos, e as preocupações eram nesse sentido: medo de contaminar parentes.
Como o paciente já recebia acompanhamento psiquiátrico, Carolina orientou que ele procurasse o profissional para uma avaliação presencial. Fora isso, auxiliou com dicas para o manejo da ansiedade.
— Essa pessoa tinha uma grande preocupação com as notícias. Então sugeri que dedicasse apenas um momento do dia para se informar em vez de ficar o tempo todo conectada. Indiquei as informações de sites oficiais, como do Ministério da Saúde. Também ensinei técnicas de mindfulness, exercícios respiratórios bem simples para colocar em prática.
Para vencer os problemas para dormir, a médica recomendou que o indivíduo mantivesse a rotina, com horários preestabelecidos.
— Recomendei fixar horários para as coisas. Não dormir tarde e manter a qualidade do sono para manter a imunidade forte. Em um contato posterior, a pessoa afirmou que tinha conseguido dormir melhor.
Ansiedade na pele
Diretamente de sua casa em Aracaju, no Sergipe, a psicóloga Juliana Silva Linhares atendeu, em duas ocasiões, uma médica que trabalha em Manaus, no Amazonas. A ansiedade e as incertezas permearam os atendimentos.
—Ela não trabalha em hospital, mas em unidade básica de saúde, que tinha uma rotina criada para atender pessoas locais e acompanhar famílias. Agora, mudou tudo. Essa médica vai atender em um centro que vai receber pacientes com síndromes gripais, independentemente de ser covid-19 ou não — relata.
Também existe um sofrimento grande pela cobrança interna de produtividade. Ela precisa estar ali para não sobrecarregar os colegas.
JULIANA LINHARES
psicóloga atende médica de Manaus
A psicóloga também precisou lançar mão de técnicas de relaxamento para amenizar a ansiedade da paciente. Segundo ela, a angústia da médica era tamanha que apareceram até sintomas físicos, como tremores, taquicardia, falta de ar e sudorese.
— Também existe um sofrimento grande pela cobrança interna de produtividade. Ela precisa estar ali para não sobrecarregar os colegas — completa Juliana.
Por videochamadas, a psicóloga deu uma tarefa de casa para a médica: usar a respiração a seu favor sempre que a ansiedade resolver aparecer. Fora isso, orientou a médica a seguir o acompanhamento psiquiátrico que já fazia, ajustando as medicações prescritas.