Na noite de 24 de março, uma mulher de 91 anos morreu no Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, tornando-se a primeira vítima da covid-19 em território gaúcho. No mês transcorrido desde então, muita coisa mudou no Rio Grande do Sul. Ruas se esvaziaram, empresas fecharam as portas, decretos foram baixados e depois revistos, novos hábitos de ensino, trabalho, convivência e higiene surgiram. É como se, em apenas 30 dias, houvéssemos passado a viver em um outro mundo.
O fechamento do primeiro mês a partir da morte da idosa de 91 anos é um bom momento para fazer um balanço de como a epidemia evoluiu no Estado e de como nos preparamos para o que ainda está por vir. Para fazer essa avaliação, GaúchaZH procurou cinco autoridades e especialistas de setores estratégicos no combate ao coronavírus: Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde, Dudu Freire, presidente da Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs), Paulo Ernesto Gewehr, coordenador da Câmara Técnica de Infectologia do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Francisco Paz, diretor-técnico do Grupo Hospitalar Conceição, e Alexandre Vargas Schwarzbold, presidente da Sociedade Rio-Grandense de Infectologia (que respondeu aos questionamentos em conjunto com Ronaldo Campos Hallal, consultor da SRGI). Confira:
Distanciamento social
Iniciadas ainda antes da primeira morte por covid-19, as medidas de distanciamento social tiveram momentos de forte adesão por parte da sociedade gaúcha e contribuíram para barrar a epidemia, embora tenha ocorrido um preocupante relaxamento nos últimos dias. Um estudo feito por governo do Estado e Universidade Federal do RS (UFRGS) estimou que 354 mortes ocorreriam até 30 de abril, se não houvesse adoção de nenhuma medida. Com o isolamento, a projeção cai para 62 óbitos. Na quinta-feira (23), as mortes eram apenas 28.
O presidente da SRGI, Alexandre Vargas Schwarzbold, afirma que a adesão chegou perto de 70% antes do feriado de Páscoa, com impacto na curva de novos casos.
— Desde então, observou-se redução da adesão ao isolamento, impulsionada pela flexibilização do decreto estadual e comprometida pela pressão de agentes econômicos e gestores municipais — alerta.
O decreto a que Schwarzbold se refere foi assinado no dia 9 pelo governador Eduardo Leite e tornou menos rígida a proibição de abertura do comércio. O presidente da Famurs, Dudu Freire, para quem as medidas de distanciamento nunca alcançaram, no Interior, o mesmo nível registrado na Região Metropolitana, declara-se receoso:
— Alguns prefeitos entendem que é preciso maior flexibilização, outros, que tem de reforçar as regras de isolamento. Existe muita divergência e houve muita pressão. Sem dúvida, tínhamos uma adesão muito maior dias atrás. Minha maior preocupação é que todos os prefeitos tenham a sensação de que estamos voltando à normalidade. Mas é ilusão achar que estamos em um momento de retomada.
Na terça-feira (21), quando Leite apresentou um plano para retomada de atividades econômicas a partir de maio, de acordo com a situação da epidemia em cada região, Freire se mostrou ainda mais preocupado, prevendo uma "tragédia" em caso de retorno à normalidade.
Minha maior preocupação é que todos os prefeitos tenham a sensação de que estamos voltando à normalidade. Mas é ilusão achar que estamos em um momento de retomada
DUDU FREIRE
Presidente da Famurs
Na rede hospitalar, o impacto do distanciamento social ao longo dos últimos 30 dias se traduziu em procura por atendimento abaixo do previsto.
— O número de casos está bem aquém do esperado, o que aparentemente se deve ao distanciamento. Um fenômeno interessante é que o movimento geral caiu mais de 50%. No Hospital Cristo Redentor, 70%, com uma queda significativa no número de traumas e acidentes — analisa o diretor-técnico do Grupo Hospitalar Conceição, Francisco Paz.
Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde:
"Tivemos uma resposta positiva da população no cuidado para ficar em casa. Tanto as orientações do governo do Estado quanto dos municípios aconteceram no momento mais adequado, evitando-se a disseminação do vírus. Os dados comprovam que as medidas adotadas pelo decreto de calamidade pública são a evidência da 'dose certa', porque a taxa de crescimento diário médio do Rio Grande do Sul é menor em comparação com outros Estados. Consideramos que o isolamento domiciliar de casos suspeitos e os seus contatos foi uma ação que colaborou para a contenção do vírus."
Curva de casos e de mortes
A esta altura, todo mundo já sabe que é preciso achatar a curva. E que a tal curva é a evolução do número de infectados e mortos. Nesse quesito, o Rio Grande do Sul tem bastante a comemorar. Diferentemente do que ocorreu em outros Estados e países, a epidemia não conseguiu decolar aqui.
Até a manhã desta quinta-feira, passados 30 dias desde a primeira morte, havia 28 vítimas fatais no Estado – menos de uma por dia. Para ter uma ideia do que isso significa, é interessante comparar o Rio Grande do Sul com países de população similar. Vários deles computavam um número muito superior de óbitos no 30º dia. Contra os 28 daqui, havia 3.019 na Bélgica, 793 na Suécia, 37 na Tunísia, 183 na República Dominicana e 567 em Portugal – país, aliás, apontado como exemplo europeu em achatamento da curva.
Paulo Gewehr observa que a situação gaúcha também é vantajosa em relação a outras unidades da federação. A taxa de crescimento diário de infectados no Estado estava em 2,85% na quarta-feira, enquanto a média nacional era de 6,32%. Em termos proporcionais, o Rio Grande do Sul tinha 8,11 casos por 100 mil habitantes. No Amazonas, eram 59,81. A média nacional ficou em 21,77. As mortes gaúchas foram de 0,24 por 100 mil, enquanto a média brasileira estava em 1,38.
Apesar dos números de causar inveja, especialistas e autoridades sublinham que não dá para se iludir. Eduardo Leite, por exemplo, considera que nos aguardam momentos graves em junho e críticos em julho. É quando o inverno estará a pleno.
— Estamos no início do enfrentamento. Ainda temos todo o inverno pela frente, e conhecemos o rigor do inverno gaúcho. São pelo menos três meses de frio em que aumentam as doenças respiratórias e os hospitais ficam com ocupação maior — lembra Dudu Freire.
A maior circulação da população, em especial sem fechamento de fronteiras e viagens, deve acelerar a ocorrência de novos casos. Estamos na fase inicial da pandemia, com tendência de crescimento nas próximas semanas
ALEXANDRE SCHWARZBOLD
Presidente da SRGI
Ou seja, a curva está achatada, mas ainda há muita curva adiante.
— A maior circulação da população, em especial sem fechamento de fronteiras e viagens, deve acelerar a ocorrência de novos casos. Estamos na fase inicial da pandemia, com tendência de crescimento nas próximas semanas — alerta Alexandre Schwarzbold.
Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde:
"Temos projeções que nos dão a certeza de que o que fizemos até aqui foi oportuno. E que a retomada gradativa, responsável e controlada tem de ser baseada em parâmetros e estratégias de mitigação, para que não tenhamos um crescimento exponencial e a rede entre em colapso. Tomando como referência um dos estudos, a estimativa de hospitalização em UTI, em 30 de abril, seria de 1.520 pacientes sem distanciamento social e de 131 com distanciamento social. A perspectiva de pico vai depender do distanciamento controlado, da reação da população, entre outras medidas, mas estima-se que seja entre final de maio e início de junho."
Estrutura de atendimento
Dar fôlego ao sistema de saúde foi uma das razões para a população ter se recolhido em casa ao longo do último mês. O plano consistia em conter a circulação do vírus para evitar a sobrecarga dos serviços e permitir que houvesse tempo de montar uma estrutura de atendimento à altura do desafio. A primeira parte do objetivo foi atingida. No Rio Grande do Sul não houve superlotações, falta de leitos ou médicos tendo de escolher quem salvar. Na Capital, a taxa de ocupação dos leitos de UTI por pacientes de covid-19 atingiu um máximo de 11%, em 1º de abril. Nesta semana, estava em 8,4%. No Estado, em 14%.
A segunda parte da meta, preparar o sistema para dias piores, é de atingimento mais complicado. Mas houve avanços.
— Todos os serviços médicos se mobilizaram, por meio da implementação de medidas de prevenção, capacitação profissional, diminuição de cirurgias, consultas e exames eletivos, aumento da capacidade de leitos de UTI e compra de EPIs — afirma Paulo Gewehr.
Alexandre Vargas Schwarzbold ressalta que a ampliação na quantidade de leitos de UTI e de respiradores artificiais é essencial:
— O tempo de internação pode ser de no mínimo 20 dias, e a qualidade da assistência tem impacto no tempo até a alta e na mortalidade.
Como exemplo dos avanços obtidos, pode-se citar o exemplo de Porto Alegre, que projetou a necessidade de chegar a 360 leitos de UTI públicos apenas para pacientes de covid-19. Nas últimas semanas, a prefeitura montou um plano que prevê chegar a 383, incluindo leitos novos — mas isso depende da chegada de respiradores.
O Grupo Conceição, como parte do esforço, conseguiu mais 28 leitos, o que permitirá oferecer um total de 69 vagas para os doentes graves.
— Ao longo deste mês, evoluímos. Organizamos os novos leitos, montamos um centro de triagem com auxílio de barracas emprestadas pelo Exército, estruturamos fluxos. E nossa potencialidade de aumentar ainda existe. Podemos chegar a 106 leitos, se houver necessidade. Também adquirimos e recuperamos respiradores, mas para chegar ao nosso limite máximo de leitos ainda precisaríamos de mais 30 — revela Francisco Paz.
No Interior, na avaliação do presidente da Famurs, pode haver gargalos. Dudu Freire dá o exemplo de sua região: são 200 mil habitantes, em municípios como Palmeira das Missões, Panambi, Frederico Westphalen, Sarandi, Chapada e Constantina – e apenas 10 leitos de UTI.
— Estamos mais bem preparados do que há 30 dias, mas isso não significa que seja suficiente. Deu para aumentar ventiladores, abrir alguns leitos, fazer treinamento e contratar pessoal. Os equipamentos ainda estão chegando, os hospitais ainda estão em obras, as equipes ainda em treinamento. Se formos ver, o que se conseguiu aumentar em leitos não deve ser superior a 15%. É pouco — diz Freire.
Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde:
"O Estado fez o Plano de Contingência para organizar a rede assistencial. Os municípios de grande porte também se estruturaram. A oferta total é de 6.711 leitos clínicos na rede SUS. Quanto aos leitos de UTI, temos duas situações: 298 leitos novos equipados (com equipamentos do Ministério da Saúde, locados pelo Estado e dos próprios dos municípios) e 317 leitos novos sem equipamentos (são estruturas físicas prontas). Além dos leitos já existentes na rede pública e privada, lançaremos um edital para contratar até 150 leitos da rede privada. Dependendo do cenário mais agressivo ou extremo, teremos de aproveitar os equipamentos dos blocos cirúrgicos (esperamos que não seja necessário). Ainda estamos em processo de compra de 200 respiradores, 200 monitores e 600 camas."
Testagem da população
Alguns dos países que tiveram sucesso no combate à pandemia adotaram uma estratégia de testagem em massa. Assim, além de identificar quem está infectado, descobrem quem pegou o vírus no passado, ficou imune e pode retomar suas atividades. Testar também é crucial para obter dados que depois vão nortear a política de combate ao vírus e as decisões sobre o distanciamento social.
Apesar disso, o Brasil, e por tabela o Rio Grande do Sul, avançaram pouco nessa senda. Foram priorizados os testes em pacientes graves. Ainda assim, os exames ficaram represados, com demora no resultado. No Rio Grande do Sul, a situação melhorou depois que o Laboratório Central do Estado (Lacen) passou a realizar os exames, sem necessidade de enviar as amostras ao centro do país.
— No início, estávamos com dificuldade de executar os testes até para nossos pacientes internados, Tínhamos de esperar mais de sete dias. Atualmente, os resultados estão vindo do Lacen em 24 a 48 horas. Do ponto de vista do hospital, a situação está contornada, mas em termos de população precisaríamos estar testando mais — diz Francisco Paz, do Grupo Conceição.
Por causa da escassez de exames, o melhor termômetro sobre a situação da epidemia foi dado por um estudo que o Piratini encomendou à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A instituição testou uma amostra da população e estimou que, em 1º de abril, havia 5.650 infectados – 11 vezes mais do que o dado oficial. Alexandre Vargas Schwarzbold lembra que foram usados no estudo testes rápidos para detectar anticorpos, "que são identificados 10 dias após o contato com vírus e não possuem sensibilidade alta". Ou seja, o número pode estar subestimado.
A estratégia das autoridades tem sido destinar os testes existentes a profissionais essenciais, como os de saúde e segurança. Até o momento, o Piratini distribuiu 62 mil testes rápidos entre as 497 prefeituras. O presidente da Famurs, Dudu Freire, considera esse número "insignificante":
— Somos dos que menos testam no mundo. Na minha cidade, Palmeira das Missões, recebemos 60 testes para 34 mil habitantes. Há municípios de 4 mil, 5 mil habitantes, que receberam 20 kits. Precisaríamos de milhões de testes.
Estamos fazendo testes bem abaixo do que precisamos
PAULO ERNESTO GEWEHR
Coordenador da Câmara Técnica de Infectologia do Cremers
Paulo Gewehr considera fundamental a testagem massiva da população para obtenção de dados sobre o comportamento do coronavírus:
— Essas informações são importantes para sabermos como o vírus está circulando em relação às faixas etárias e regiões do Estado, por exemplo, a fim de escolher as melhores estratégias de enfrentamento da pandemia. Estamos fazendo testes bem abaixo do que precisamos.
Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde:
"O Ministério da Saúde abasteceu o RS com mais de 62 mil testes rápidos anticorpo, distribuídos para os municípios testarem trabalhadores da saúde e da segurança. O Estado comprou 30 mil testes rápidos antígeno, que podem ser aplicados em pacientes sintomáticos, e 50 mil testes RT-PCR. Além do Lacen, que processa em média 300 exames ao dia do RT-PCR, o Estado assinou convênio com a UFRGS e a UFCSPA para a realização de até 200 testes/dia. A prioridade é testar pacientes internados e eventuais óbitos sem diagnóstico. Devemos contratar um laboratório de referência para cada macrorregião."
Atuação do poder público
No que diz respeito ao papel das autoridades no combate à pandemia, o grande destaque ao longo do último mês foi o embate entre o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o presidente da República, Jair Bolsonaro. Enquanto o primeiro defendia as recomendações da Organização Mundial da Saúde, que prescreve medidas de isolamento, Bolsonaro minimizava o risco do coronavírus e incentivava a população a voltar às ruas. Os sinais conflitantes que vieram de Brasília respingaram na realidade gaúcha, segundo o presidente da Famurs, Dudu Freire:
— Não é produtivo, em momento de pandemia, termos opiniões divergentes entre quem está liderando o processo. Essa forma de negar a violência da pandemia, negar seus efeitos, sem dúvida vem atrapalhando e chega na ponta. A gente tem muita dificuldade de convencer as pessoas da gravidade da situação, de que elas precisam ficar em casa, de que precisam respeitar as regras, se temos líderes que dizem que isso não é necessário.
Freire também afirma que os prefeitos esperam mais agilidade dos governos estadual e federal no envio de equipamentos, repasse de recursos e preparação dos hospitais. No cômputo geral, no entanto, o esforço das instituições e poderes públicos recebe avaliação positiva. Alexandre Vargas Schwarzbold elogia o SUS, que se mostrou estratégico, apesar da perda de financiamento nos últimos anos, e as universidade públicas, que ofereceram respostas rápidas ao enfrentamento do vírus, com trabalhos laboratoriais e epidemiológicos.
— Apesar de eventuais informações contraditórias emitidas por alguns entes, de maneira geral a orientação vertical de um programa nacional de vigilância epidemiológica contribuiu para o sucesso das medidas de prevenção até agora realizadas. Mas, como as ações de saúde ocorrem nas cidades, no cotidiano das pessoas, coube aos governadores a resposta mais adequada à pandemia, como vem sendo reproduzido pelo governo do Rio Grande do Sul.
A gente tem muita dificuldade de convencer as pessoas da gravidade da situação, de que elas precisam ficar em casa, de que precisam respeitar as regras, se temos líderes que dizem que isso não é necessário
DUDU FREIRE
Presidente da Famurs
Paulo Gewehr entende que os dados de infecções e óbitos no Rio Grande do Sul indicam um impacto positivo das medidas que foram tomadas até aqui, mas teme que a flexibilização das regras, como a adesão de um "distanciamento seletivo", possa servir de combustível para a pandemia. O especialista também elogia o Supremo Tribunal Federal, por decisão do final de março que reconheceu a competência de Estados e municípios para adotar medidas de combate ao vírus.
Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde:
"Do Ministério da Saúde, recebemos orientação técnica de grande valia, especialmente da Secretaria Nacional de Vigilância em Saúde e do gabinete do ministro da Saúde. Soma-se a isso o repasse de recursos financeiros, bem como EPIs e 30 leitos de UTI. Quanto aos municípios, há um planejamento conjunto através da Famurs e de conselhos municipais. Destaca-se o apoio dos hospitais para instalar novos leitos. Dou como exemplo concreto de solidariedade do setor privado a corrente de colaboração para a abertura do Hospital Regional de Santa Maria, estratégico para a covid-19 na Região Central do Estado."