Um dos países mais fechados do mundo, uma ditadura teocrática comandada com mão de ferro pelos aiatolás, o Irã tem chamado atenção por rivalizar com a Itália o posto de nação com maior número de casos de coronavírus fora da China. Nesta quarta-feira (11), estava atrás do país europeu, com 9 mil infectados e 354 mortes (a Itália registra 10,1 mil com 631 óbitos), segundo o balanço da Universidade Johns Hopkins. Mas essa ordem muda com frequência e, em se tratando do Irã, cujo governo autoritário é conhecido por ocultar informações que possam colocar em risco o pulso firme dos aiatolás, as estatísticas repassadas às autoridades internacionais podem esconder números muito maiores. Uma das suspeitas se deve ao fato de o percentual de letalidade do coronavírus na nação do Oriente Médio ser mais alto do que em outros países.
Outro aspecto desperta atenção. No Irã, o coronavírus atingiu os altos escalões do poder. Pelo menos 23 membros do parlamento foram diagnosticados com a doença e até a vice-presidente para Assuntos da Mulher e da Família, Masoumeh Ebtekar, e o vice-ministro da Saúde, Iraj Harish, foram infectados. Um ex-diplomata, Hadi Khosroshahi, 81 anos, importante teólogo que foi embaixador do país no Vaticano por uma década, morreu em decorrência de pneumonia causada pela covid-19. Um dos principais conselheiros do líder supremo da nação, aiatolá Ali Khamenei, também morreu. Mohammad Mirmohammadi, 71 anos, tinha a função de resolver disputas entre o chefe religioso e o parlamento. Ele teve contato com Khamenei dias antes de morrer.
O coronavírus chega ao Irã em um momento tenso para o regime, na sequência de episódios que fizeram tremer as estruturas da república islâmica: manifestações deflagradas pelo aumento dos preços dos combustíveis que logo se tornaram gritos por democracia, a morte do general Qassem Soleimani, alto oficial militar, em um ataque americano no Iraque que quase levou o mundo a uma nova guerra, a queda de um Boeing turco com 176 pessoas a bordo, abatido erroneamente por um míssil iraniano, e a demora do governo em admitir responsabilidade pela tragédia. Tudo nesse início de 2020.
O país passou a sofrer novas sanções econômicas em razão de suas ambições nucleares. Em caso de epidemias, punições como essas acabam tendo impacto direto na população: empresas e países não podem exportar medicamentos ou equipamentos como máscaras e antissépticos para o Irã porque estariam violando acordos internacionais e poderiam sofrer represálias dos Estados Unidos, por exemplo.
— O fato de o Irã estar isolado em função das sanções econômicas torna o cenário pior porque eles não recebem remédios de ponta. O fato de a China, um dos principais aliados do país, estar com problemas de coronavírus e não poder mandar ajuda acaba atrapalhando muito — avalia o consultor Michel Alaby, que atuou por 35 anos na Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e é especialista também em temas relativos aos persas.
Quando o coronavírus chegou ao Irã, altos funcionários, incluindo o presidente Hassan Rouhani, insistiram que a vida voltaria rapidamente ao normal. O aiatolá Khamenei disse que o vírus não afetaria o país por muito tempo e desapareceria.
— Não quero dizer que não é importante, mas não vamos exagerar. O coronavírus não afetará o país por muito tempo e irá embora — declarou.
Quarentenas foram rejeitadas, as eleições legislativas, realizadas, e médicos teriam sido repreendidos por usar máscaras em hospitais. Conforme o jornal The New York Times, agentes de segurança dentro de hospitais alertavam funcionários a não falar sobre a escassez de medicamentos ou mortes por vírus. Tudo em nome da preservação da calma pública e o temor de provocar pânico.
À medida que a pressão aumentava, o governo agia tardiamente. As orações de sexta-feira (dia sagrado do Islã) foram canceladas nas principais cidades pela primeira vez desde a Revolução Islâmica de 1979, mas locais sagrados, como a cidade de Qom, epicentro da crise, permaneceram abertos. No local, fica o santuário de Fatima al-Masumeh (irmã do imã Reza, descendente direto do profeta Maomé e, por isso, membro do grupo que originou o xiismo). A região recebe milhares de fiéis a cada semana. Nesses dias de alerta, uma tradição preocupa as autoridades de saúde: os muçulmanos costumam beijar ou lamber as janelas folheadas a ouro do mausoléu para mostrar sua fé de que Alá os protegerá.
Governo decidiu impor restrições
Com o aumento da preocupação, algumas restrições estão agora em vigor. O governo decidiu libertar 54 mil prisioneiros das cadeias. As pessoas foram aconselhadas a evitar reuniões desnecessárias. Há orientação (não proibição) para que não se viaje a Qom. A Organização Mundial da Saúde (OMS) enviou 7,5 toneladas de suprimentos médicos para apoiar 15 mil profissionais de saúde e mil kits de triagem capazes de avaliar a situação de saúde de 100 mil pessoas.
Radicado em São Paulo, o xeque iraniano Hossein Khaliloo, diretor do Centro Islâmico Imã Hussein, rejeita as acusações de falta de transparência do governo de seu país. Ele afirma que, desde o início, as autoridades estão agindo para conter o avanço da doença.
— O povo está na luta para controlar a situação do vírus. O Irã está bloqueado (pela comunidade internacional). Não permitem ao Irã importar medicamentos. Isso é um crime, esses países não permitirem que se importe remédios para a população — diz.
Ele acusa a imprensa ocidental, em especial a americana, de usar o coronavírus para fazer propaganda contra o regime islâmico.
— Há um exagero. Estão passando a notícia de que a situação é pior no Irã, de que o país não consegue controlar a doença, que estão morrendo muitas pessoas, que estão morrendo nas ruas e que o governo não está dando atenção. Não é verdade. Sim, o coronavírus existe, e o governo está passando oficialmente o que está acontecendo lá para as autoridades internacionais — defende.
Mapa do coronavírus
Acompanhe a evolução dos casos por meio da ferramenta criada pela Universidade Johns Hopkins:
Outro problema é a disseminação de notícias falsas e teorias da conspiração sobre a origem do vírus. Esta semana, uma nova tragédia foi provada por boatos turbinados pelas redes sociais: pelo menos 44 pessoas morreram intoxicadas no Irã após beber álcool adulterado, acreditando em uma informação falsa de que bebidas alcoólicas ajudam a curar o novo coronavírus. O consumo e a venda de álcool são proibidos pela lei islâmica, mas a mídia local frequentemente fala sobre intoxicações mortais com álcool de contrabando.
Ninguém sabe até que ponto o coronavírus se espalhou no Irã, mas, com base em dados que hospitais de Teerã vazaram para o jornal The Washington Post, epidemiologistas estimam que haja agora 28 mil casos — excedendo em 19 mil os dados oficiais.