Quando o Irã começou a despontar como um dos principais epicentros mundiais da crise do coronavírus, a pesquisadora Cilene Victor estava em Qom, cidade sagrada do país dos aiatolás, que, àquela altura, estava mais fechado do que o habitual. Piauiense radicada em São Paulo desde a infância, a professora viajou à nação para apresentar um trabalho científico em uma conferência, mas, com a epidemia se alastrando – agora uma pandemia mundial –, não apenas o evento foi cancelado. Universidades e escolas suspenderam aulas e países vizinhos fecharam fronteiras.
— Quando cheguei lá (em 22 de fevereiro), no aeroporto, fizeram uma fila para quem estava vindo do Irã para verificar a temperatura, ver quem tinha febre. Deram luva para quem estava sem, máscara — conta a docente de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo e da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (Fapcom), e doutora em Saúde Pública.
Cilene só conseguiu deixar o país em um voo com destino ao Azerbaijão, em 27 de fevereiro. Nesta entrevista, concedida por telefone, de Paris, ela conta como o governo iraniano está lidando com crise.
Pelo que a senhora viu, como o Irã está enfrentando o coronavírus?
A gente tem sempre a ideia de que o Irã é um país fechado, mas, certo dia, estava na casa de um professor e equipes de saúde passaram distribuindo um kit com três máscaras, um antisséptico e uma orientação. O governo iraniano está fazendo uma campanha de comunicação, e falo com propriedade porque sou doutora em saúde pública e meu trabalho é sobre comunicação de riscos. Quando se fala em epidemia, ainda mais no caso do coronavírus, as taxas de letalidade, são mais altas em pessoas com quadros de maior vulnerabilidade, idosos e com doenças pré-existentes. Eu tenho asma e eu estava em Qom, epicentro do coronavírus no Irã.
Por que a senhora acredita que o Irã se tornou o terceiro país com maior número de casos?
O Irã é a capital do xiismo (uma ramificação do islamismo). É um país que recebe muitos peregrinos, tanto que o primeiro caso foi associado a um estrangeiro, um peregrino. O acesso à saúde no Irã é parecido com o nosso, acesso universal. As pessoas têm acesso à saúde pública.
Qom era o epicentro porque é uma das cidades religiosas mais importantes do Irã, berço da Revolução Islâmica, onde está o santuário de Masumeh , que recebe peregrinos, estudiosos do islã xiita, gente do mundo inteiro.
Quando a senhora chegou ao Irã, como estava a epidemia?
Cheguei no sábado (22 de fevereiro). No domingo, a conferência da qual eu participaria foi cancelada. As universidades e escolhas foram fechadas. Comecei minha maratona para voltar para o Brasil. Quando saí do Brasil, no dia 20, falava-se em dois óbitos no Irã. Quando cheguei a Teerã, meus anfitriões, um iraniano e um brasileiro, me levaram para Qom. No dia 23, o governo suspendeu várias atividades sociais, fechou o santuário de Fátima, em Qom, para evitar peregrinação. No mesmo domingo, Erdogan (presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan) anunciou o fechamento das fronteiras com o Irã. No dia 24, meu voo de retorno foi cancelado. A previsão ficou para o dia 12 de março, mas eu tinha uma banca de doutorado na França. Meu desespero era para conseguir sair do país e seguir com minha agenda. Do ponto de vista do coronavírus, eu estava hospedada em um hotel novo, todo com piso de porcelanato. Não tinha carpete, que você fica muito mais vulnerável por causa de fungos e ácaros.
Como a senhora avalia a maneira como o tema está sendo tratado internamente?
É um quadro preocupante, os avisos da OMS (Organização Mundial da Saúde). Mas não há dúvida de que (a repercussão) está um tom a mais. Há uma questão política. No caso do Irã, tentaram fazer uma revanche. O Irã não é uma democracia, é um governo totalitário, uma ditadura, há um uso político do coronavírus. Em um momento como esse, é muito desonesto, porque deixa as pessoas sem informação.
Mas há suspeitas de que falta transparência por parte do governo.
Vi muita informação sendo disseminada. Em um primeiro momento, não só o governo do Irã, mas todos os outros tentam não dar o cenário (real), até porque, às vezes, eles também não têm esse cenário. Estamos falando em dados epidemiológicos, de pessoas que já estavam com doenças pré-existentes, de idosos com a saúde mais debilitada, com problemas respiratórios. Isso complicou. Um diplomata disse que o mundo não está preparado do ponto de vista de governança global para enfrentar o coronavírus. Governos fecharam fronteiras, companhias aéreas cancelaram voos, não deu tempo para gerenciar o problema. O problema foi socialmente amplificado. A questão de fake news, das informações desencontradas.
O governo fazia pronunciamentos sobre o coronavírus? A senhora via informações circulando?
Isso (crise do coronavírus) aconteceu um mês depois do assassinato do Soleimani (general Qasem Soleimani, alto oficial iraniano morto pelos Estados Unidos em 3 de janeiro). Houve uma série de manifestações no Irã antes do assassinato em decorrência do aumento do combustíveis, depois veio sua morte, na sequência a derrubada do avião (Boeing da companhia Ukraine Airlines com 176 pessoas a bordo abatido equivocadamente pelas forças iranianas na noite da morte do militar). O governo iraniano não quis assumir em um primeiro momento sua responsabilidade. O governo canadense disse havia sido um míssil, o governo iraniano hesitou em um primeiro momento, depois houve algumas manifestações nas ruas. O negócio tomou corpo, aí o Irã assumiu (a culpa). Na sequência vem o coronavírus. É claro que o moral do governo estava abalado. O coronavírus chegou com as eleições no Irã. Foi muito para eles. Em um primeiro momento, muitos iranianos questionavam a transparência do governo. Saí do Brasil com dois casos, quando cheguei ao Irã havia seis. O pessoal se perguntava: qual o número real? Ouvi uma pesquisadora dizendo que o fato de ter se criado pânico em relação ao coronavírus pode comprometer, no futuro próximo, a transparência dos governos em relação a outras epidemias. Veja o que aconteceu com a China, com a Itália, com o Irã e, agora, com o Brasil. Isso afeta a questão do turismo, da economia. Aí, os governos começam a temer (divulgar dados). A gente precisa ter as instituições democráticas trabalhando com toda a responsabilidade, junto com o jornalismo, para não causar pânico. Nada justifica um governo não ser transparente, mas a maneira como coronavírus está sendo coberto, tende a acontecer isso.
Os veículos de comunicação oficiais do Irã estavam prestando informações à população?
Estavam divulgando, mas é importante dizer que a população não deu trégua. Estava insistindo. Como o governo demorou para assumir a queda do avião, a população já não deixou essa lacuna. Ficou em cima para que o governo se pronunciasse sobre o coronavírus e fosse transparente. E teve de ser. Até porque começou a chegar à cúpula do governo.
Por que, na sua opinião, autoridades foram infectadas?
Acho que tem a ver com a questão de eles terem circulado, de tentarem mostrar que o governo estava fazendo alguma coisa. O vice-ministro da Saúde esteve visitando os hospitais, as autoridades estavam mostrando que não estavam no gabinete, que estiveram junto ao público.
E como estava a movimentação nas cidades?
O iraniano é muito cordial, quando cheguei, meus amigos disseram: "Olha, o cenário está assim, cancelaram a conferência". Amigos foram me levar álcool gel, máscara. Eu já havia estado nessa cidade (Qom) em julho do ano passado. Não era a mesma cidade. Estava vazia. Certo dia, fomos jantar em um restaurante e só tinha a nossa mesa e mais duas com clientes. Era um restaurante em que eu havia ido da outra vez e estava lotado. As pessoas não estavam lá dessa vez, cancelaram aulas nas escolas e universidades, as pessoas não estavam nas ruas. O comércio estava bem fraco, pessoas usando luvas descartáveis, máscara, não estavam se cumprimentando. Homens já não cumprimentam mulheres com contato físico. Mas, no caso das mulheres, estavam me cumprimentava de longe, sem abraço. E normalmente as mulheres são muito calorosas, elas se abraçam, os homens se cumprimentam com as mãos. Nem esses cumprimentos estavam acontecendo.
Com as fronteiras fechadas, como a senhora conseguiu sair do Irã?
A Turkish Airlines cancelou o voo porque Erdogan fechou as fronteiras. Houve um dia muito estressante, a terça-feira, dia 25 de fevereiro, em pleno Carnaval no Brasil. Fui para o aeroporto embarcar e não consegui de jeito nenhum: o voo para a Rússia estava esgotado, para o Líbano havia sido cancelado, amigos tentaram comprar para seus países e não conseguiram. Consegui sair do país no dia 27, pelo Azerbaijão. Quando cheguei lá, no aeroporto, fizeram uma fila para quem estava vindo do Irã para verificar a temperatura, ver quem tinha febre. Deram luva para quem estava sem, máscara. E o medo de quem estava na fila de estar com febre? Passei pelo crivo da febre, dai fui para Turquia e, de lá, para São Paulo.
Mapa do coronavírus
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