Menos de dois anos depois de o Brasil receber o certificado de eliminação do sarampo pela Organização Pan-Americana da Saúde, o inimigo está à espreita novamente. Dados do Ministério da Saúde mostram que a população está baixando a guarda na atualização das vacinações e isso tem ampliado a chance de doenças avançarem, inclusive aquelas há tempo esquecidas. O Rio Grande do Sul, infelizmente, está alinhado à queda nacional de percentuais na imunização básica, especialmente nas vacinas previstas no calendário para crianças de até um ano – rotavírus humano, meningococo C, hepatite B, penta, pneumocócica poliomielite, febre amarela e tríplice viral – e também entre as demais imunizações que compõem o Programa Nacional de Imunização (PNI), que tem 19 vacinas no total.
Para a primeira dose da tríplice viral, por exemplo, que protege contra sarampo, rubéola e caxumba, a cobertura no Estado ficou, no ano passado, em pouco mais de 83% da meta (que prevê a aplicação em 95% do público-alvo), abaixo do índice nacional de 84,97%.
Na pneumocócica, o primeiro reforço sequer atingiu os 80% da meta, mesmo em um Estado em que as doenças respiratórias figuram entre as principais causas de problemas graves de saúde entre as crianças. No Brasil, o percentual para essa imunização também foi mais alto do que no RS: 84,76%. Para pólio, o Estado registrou a menor cobertura dos últimos cinco anos: 81,46%.
Quando as pessoas não veem a doença, elas se sentem seguras e não percebem o perigo. Não conhecem ninguém que tenha e diminuem o cuidado.
JUAREZ CUNHA
Integrante do Comitê de Infectologia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul
Integrante do Comitê de Infectologia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul, Juarez Cunha explica que não há vacina que imunize 100% do grupo em que é aplicada. Sempre há um percentual de indivíduos que não reage aos imunizantes. Quando não se consegue nem atingir a meta de vacinação, temos um número ainda maior de pessoas que ficam suscetíveis. Nas doenças contagiosas, como o sarampo, isso representa um leque significativo de chance de disseminação.
Para Cunha, o distanciamento da população das vacinas se dá por diversos fatores, mas pelo menos um é praticamente consenso entre entidades médicas e de saúde: a falta de memória.
— Quando as pessoas não veem a doença, elas se sentem seguras e não percebem o perigo. Não conhecem ninguém que tenha e diminuem o cuidado — avalia.
Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri entende que a perda da percepção de risco endossa a eficácia das vacinas, que relegaram ao passado a ocorrência de doenças sérias como sarampo, paralisia, difteria e coqueluche.
— O próprio profissional de saúde da nova geração nunca tratou desses casos. A vacina acaba sendo vítima do seu enorme sucesso. Tanto fez desaparecer as doenças que a população acabou não se sentindo sob risco — diz.
A vacina acaba sendo vítima do seu enorme sucesso. Tanto fez desaparecer as doenças que a população acabou não se sentindo sob risco.
RENATO KFOURI
Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações
No caso do sarampo, a confirmação de cinco casos no Estado e de outras dezenas na Região Norte do país fez com que a Sociedade Brasileira de Pediatria orientasse os médicos a redobrar a atenção nos diagnósticos, colocando a doença – antes desconsiderada por conta da erradicação – na lista de possibilidades consideradas na avaliação de pacientes. Reforçar a importância de manter a carteira de vacinação das crianças em dia também está entre as recomendações.
Rede pública nem sempre tem estoque suficiente para demanda
A responsabilidade pela queda nos índices não recai somente sobre a população. A rede pública nem sempre dá conta da demanda, e não é raro faltar vacinas nos postos. Em março, o Estado passou um bom período sem oferecer a pentavalente, que imuniza contra difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e meningite.
À época, a Secretaria Estadual de Saúde disse que o problema havia ocorrido por atraso no repasse pelo Ministério da Saúde. A assessoria de comunicação da secretaria informou ontem que não teria condições de confirmar a situação dos estoques do Estado até o fechamento desta edição. O Ministério da Saúde, também por meio de sua assessoria, disse que faz os repasses de acordo com a demanda dos Estados.
Mas há, pelo menos, mais dois pontos que podem explicar os índices mais baixos. Nas redes sociais, muitas informações equivocadas sobre as imunizações acabam gerando dúvida sobre eficácia e possíveis efeitos colaterais, ainda que não seja creditado a elas o maior decréscimo na cobertura vacinal. Outro ponto é que os raros casos em que há reações adversas a uma vacina ganham expressiva exposição nos meios de comunicação, criando uma dimensão falsa dos riscos. Por outro lado, ele reconhece, a divulgação do avanço de doenças leva mais gente aos postos:
– Parece que as pessoas precisam ser lembradas constantemente da gravidade das doenças.
Controlar a doença, alerta, Renato Kfouri, não deve ser motivo para baixar a guarda:
– Os deslocamentos populacionais são muito frequentes e o ressurgimento dessas doenças é facilmente possível de acontecer em uma população que não esteja devidamente vacinada.
Mudança no sistema de controle pode se refletir nos números
Outro fato que pode, ainda que hipoteticamente, contribuir para os números preocupantes é que o Programa Nacional de Imunizações (PNI), responsável por reunir as informações de vacinação de todo o país, está passando por uma reformulação.
Desde 1994, segundo dados do Ministério da Saúde, utilizava-se sistemas com dados agregados, em que os municípios consolidavam as informações de doses aplicadas e enviavam à pasta por meio do Sistema de Informação de Avaliação do Programa de Imunização (API) e, mais recentemente, por meio do Sistema de Informação de Avaliação do Programa de Imunizações versão WEB (Apiweb). Esses dados, apesar de darem a dimensão de doses aplicadas e taxa de abandono, não permitem avaliar algumas informações sobre os vacinados, como endereço.
A partir de 2017, passou-se a consolidar um sistema de informação nominal, o SIPNI-DataSUS. Por esse modelo, vacina-se nominalmente, cadastrando a pessoa imunizada, registrando informações básicas como endereço e doses recebidas. Especialistas acreditam que essa transição pode estar refletindo-se nos números.
Independentemente disso, o alerta é para que médicos e população voltem a ter rigor no acompanhamento do calendários de vacinação, para que antigos inimigos não voltem a assombrar a saúde pública.
– Pólio e sarampo são duas doenças absolutamente controladas, que correm risco de reaparecer por situações epidemiológicas de países vizinhos, principalmente a Venezuela, que tem vivenciado casos. O risco está mais evidente. Hoje, a vacinação promove saúde em todas as faixas etárias. Mas as crianças não podem deixar de se vacinar, sob risco de vermos essas doenças serem reintroduzidas no nosso país – alerta Renato Kfouri.